Foi muito oportuna a crise psicológica da Argentina com o Brasil, recentemente divulgada pelo “Clarín”, de Buenos Aires. Oportuna porque revelou, sem formalmente comprometer o presidente Kirchner, seu estado de espírito com relação à política externa brasileira e assim abriu para o governo brasileiro, antes de a crise psicológica se converter em política, a oportunidade de adotar as convenientes medidas corretivas.
Visto na sua imediata superficialidade, o episódio é uma manifestação de ressentimento. Ressentimento do presidente diplomado com o êxito do presidente obreiro, do mais educado e civilizado país da América Latina, com a relevância internacional de uma das mais heterogêneas sociedades do mundo, em que altos níveis de cultura coexistem com mais de um terço da população destituído de qualquer educação.
Um país, entretanto, que a despeito de sua imensa heterogeneidade tem um PIB que é quase quatro vezes o da Argentina e dispõe do mais importante parque industrial do Terceiro Mundo. Por trás desses aspectos mais superficiais existem questões muito mais sérias, que estão exigindo imediata atenção. Trata-se de compreender a situação de países como Argentina e Brasil no mundo e, a partir de um lúcido entendimento dessa situação, formular e implementar as convenientes políticas.
O processo de globalização, exacerbado pelo unilateralismo imperial do governo Bush, esta conduzindo a maior parte dos países do mundo e, certamente, os países sul-americanos a se converterem, por um lado, em meros segmentos indiferenciados do mercado internacional e, por outro, em províncias do império americano. Os países europeus só escapam desse destino por se terem integrados na União Européia. Países continentais, como China e Índia, dispõem de massa crítica para assegurarem individualmente sua sobrevivência histórica. A Argentina, isoladamente, não dispõe dessa massa crítica. E o Brasil, país semicontinental, poderia isoladamente alcançá-la se não fosse seu baixíssimo nível de integração social, que o torna extremamente vulnerável a pressões externas. Para corrigir, isoladamente, seu perfil social, o Brasil necessita, se tudo correr razoavelmente, do transcurso de pelo menos três gerações, ou seja, de cerca de meio século. A História, porém, não lhe dará mais de vinte anos. E se as coisas permanecerem como estão, com taxas anuais de crescimento econômico inferiores a 6%, o Brasil se converterá, muito antes desse prazo, num mero segmento do mercado internacional e em mais uma província do império.
O que fazer? Há uma só resposta: formação de uma sólida, confiável e mutuamente proveitosa aliança com a Argentina, a partir da qual se consolidem Mercosul e a Comunidade Sulamericana de Nações. Concomitante importa, para ambos esses países, empreender um grande e sustentado esforço de desenvolvimento econômico e social. Se esse duplo objetivo for alcançado - e ele é absolutamente factível - Argentina, Brasil, e os demais países sul-americanos se converterão em um importante interlocutor internacional independente. Se não for atingido, tornar-se-ão, aceleradamente, meras expressões geográficas, domesticamente controlados pelas grandes multinacionais e internacionalmente dirigidos por Washington, embora conservem as aparências formais da soberania: bandeira, hino, exércitos de parada e até eleições. Eleições a partir das quais, quaisquer que sejam os eleitos, estes se verão compelidos, o queiram ou não, a seguir as diretrizes do mercado internacional e as ordens de Washington.
A chave para a sobrevivência histórica de Argentina e Brasil e, com eles, dos demais países do continente, é a formação, entre os dois, de uma sólida, confiável e mutuamente benéfica aliança estratégica. São múltiplos os requisitos a serem atendidos para o bom funcionamento dessa aliança. Dois, entretanto, são fundamentais: (1) uma política industrial comum e (2) uma política externa compartida. Há consenso, entre os setores responsáveis de ambos os países, a esse respeito. O que está faltando é se passar do declaratório para o operatório. A crise revelada pelo “Clarín” vem, muito oportunamente, indicar a absoluta urgência dessa transição.
É indispensável que se iniciem, prontamente, entendimentos para a formulação de uma política industrial comum e que se lhe dê início de implementação. O BNDES pode e deve exercer um papel decisivo, no financiamento de iniciativas conjuntas, sendo desejável que se constituam para esse efeito empresas binacionais e se dê prioridade à recuperação industrial da Argentina.
É igualmente indispensável que se articule e se dê execução a uma política externa comum. A Argentina deve participar ativamente da consolidação da Comunidade Sul-americana de Nações. O Brasil, por seu lado, deve estimular a Argentina a que também apresente sua candidatura a uma nova vaga permanente do Conselho de Segurança. Ambos os países devem competir amigavelmente por essa vaga, com o entendimento de que aquele que a ganhar, representará o outro.
A História é implacável com os estúpidos. Está na hora da aliança argentino-brasileira, ou da irreparável perda, para ambos os países, de seu destino histórico.
O Globo (RJ) 5/5/2005