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História de uma luta

 

Não deixa de ser a história de um povo que Elisa Lispector conta em seu livro "No exílio". Escritora que foi a irmã mais velha de Clarice Lispector, deixou uma obra diferente, mais ligada à luta do povo e da tradição judaicas pela sua permanência no mundo. Ao chegar a família Lispector ao Brasil, tinha Elisa 9 anos, a irmã do meio, Ethel, 2, e a caçula, Clarice Lispector, dois meses. Foi, assim, Clarice a única a entrar em contato com a língua portuguesa antes do estudo de qualquer outro idioma.


A família morou primeiro em Maceió e, em seguida, no Recife. Elisa estudaria no Rio de Janeiro, onde se formaria na Escola Normal e seria nomeada por concurso para cargo no governo federal, tendo representado o Brasil no Peru, onde falou em reunião da Organização Internacional do Trabalho.


Seu romance "O muro de pedras" (1963) conquistou o prêmio José Lins do Rego. Antes havia publicado "No exílio" (1948) e, depois, sairiam "Sangue no sol" (1970), "Inventário" (1977) e "O tigre de Bengala" (1985).


A reedição, agora, de "No exílio" chama de novo a atenção para a obra de Elisa Lispector, cujas páginas registram algumas das fases mais trágicas da passagem do homem pelo século XX. Foram, em seguida à revolução bolchevique (antes dos governos comunistas que deram um mínimo de estabilidade à Rússia), a Primeira Guerra Mundial, a Segunda e o início da Era Atômica, de que o Japão foi a grande vítima. Na verdade, as maiores vítimas foram os que já haviam passado, ao longo de vários séculos, por muitos tipos de inquisição e que, no século passado, haviam perdido milhões de parentes em campos de concentração.


As páginas de "No exílio" são de extraordinária força no mostrar a família Lispector atravessando a Europa, fugindo, perseguida por cossacos e por inimigos dos judeus, dormindo ao relento, comendo o que houvesse. Os Lispector haviam pedido asilo aos Estados Unidos e ao Brasil e levaram meses à espera de uma "carta de chamada" que a acolhesse no país. Receberam a do Brasil e, assim que possível, embarcaram num navio rumo ao Nordeste. A família morou em Maceió, onde o pai começou a vender, de porta em porta, tecidos de linho ou qualquer outra mercadoria, em geral de roupas ou de peças domésticas. Elisa começou a estudar Português e a freqüentar cursos.


Depois de alguns anos, foram para Recife e, com o tempo, estavam no Rio de Janeiro, onde a mais velha passou a ser conhecida e a mais nova, Clarice, se preparou para dominar de tal maneira a língua portuguesa que se tornou um dos maiores nomes da literatura brasileira em qualquer época.


"No exílio" tem estilo direto, sem desvios literários, isto é, sem recursos meramente vocabulares, porque suas realidades são firmes e duras. O que ela quer dizer - e o que sabe que tem que dizer - isto é, a luta de toda uma comunidade não só pelo direito de viver, mas também pela valorização de cada instante desse direito - isto ela narra com o máximo de dignidade literária que uma tragédia pode transmitir.


É por isto que, além de sua importância como verdadeira "memória de um povo", atinge plano mais alto e conta a história de nós todos nesta luta pelo entendimento do que somos e por que fazemos o que fazemos. Seu estilo vai diretamente à raiz, à veia mesma de muitos problemas que estão conosco há séculos e que, só de vez em quando, aparecem por escrito.


Afinal, tudo acaba. Ou não. Tudo também permanece. E os livros de Elisa Lispector, principalmente "No exílio", estão aí para provar que essa permanência pode mudar alguma coisa, pode ser um elemento no mostrar que vale a pena colocar em palavras tudo o que acontece, porque só a palavra permanece viva e atuante.


Vale, por isto, também a pena serem lembradas as palavras ditas por Otávio de Faria na data do lançamento do romance de Elisa Lispector "O dia mais longo de Teresa", em 1965: "Foi cuidada e pausadamente que Elisa Lispector construiu sua obra literária, firmando, ao longo de 20 anos de trabalho, o seu inconfundível vulto, já agora sem a menor duvida na primeira linha de nossos autores de ficção. Sua luta, sua pertinácia em se afirmar, demonstra que tem realmente o que dizer, registrou-se independente do apoio popular que, se não lhe foi adverso, permaneceu mui aquém do que merecia".


"No exílio", de Elisa Lispector, é um relançamento da Editora José Olympio. Orelhas de Bela Josef e capa de Miriam Lerner.


Tribuna da Imprensa (RJ) 10/7/2007