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Herdeiros famélicos

 

Poeta e escritor, jamais me atrevo a falar em nome da tribo a que pertenço. E, de quatro em quatro anos, assisto ao movimento de cineastas gulosos, confrades frenéticos, apetitosas beldades eletrônicas, patéticas donas de casa, vetustos professores inaposentáveis, instaladores de instalações e até jogadores de futebol e bola ao cesto que se reúnem buliçosamente para apresentar aos candidatos presidenciais um rol de reivindicações artísticas e monetárias.
 
Todos se proclamam intelectuais — o que não deixa de juncar-me de inveja, já que não sei onde começa e onde termina o intelecto, e o império da certeza não faz parte de minha geografia.

Nas reuniões tumultuosas, esse trivial fino das letras e artes, e prendas domésticas, exige aquilo que todo brasileiro, do mendigo ao banqueiro, reclama do Poder Público: dinheiro. Querem a pecúnia do Erário para custear filmes, exposições, sonetos, peças teatrais, jogos, viagens ao exterior (de preferência na classe executiva). Em nome da Pátria, pleiteiam um bom financiamento para as suas fantasias e pesadelos.

Descabe discutir aqui se ao Estado compete ou não sustentar tantos sonhos e ambições, se o seu papel deve ser o do mecenas esfuziante ou o de verdugo implacável. Desejo apenas notar, nesse catálogo de reivindicações, a ausência de um item que me parece relevante. Refiro-me ao problema do direito de imagem — nesta época da imagem e dos espetáculos vertiginosos — engastado na lei dos direitos autorais.
 
A atual legislação me proíbe de publicar as incontáveis fotos que possuo de Manuel Bandeira. Proíbe-me até mesmo de usar aquelas em que estou ao seu lado. Proíbe-me ainda de divulgar as cartas de Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Lúcio Cardoso ou qualquer outro integrante do meu universo afetivo. Pela lei, elas não me pertencem, embora dirigidas a mim. Por 70 anos, pertencem a parentes de quem as enviou. Caso ouse expô-las ao sol, serei processado judicialmente. Para divulgá-las, a legislação me aponta o caminho da negociação monetária. Terei de pagar aos herdeiros, através de judiciosos agentes literários que não dormem de touca.

Fui amigo de Manuel Bandeira durante trinta anos. Ele era solteiro e solitário e não deixou nenhum descendente direto. Que herdeiros são esses, que jamais o visitaram em sua solidão? Não os conheci nem de vista nem de chapéu. E a sua situação é a mesma de outros poetas e escritores mortos.
 
Tenho uma reivindicação a fazer à enérgica Presidente Dilma Rousseff. Peço-lhe que incorpore a obra de Manuel Bandeira ao patrimônio nacional. Livre-a dos herdeiros famélicos, dos fominhas póstumos, e a entregue ao nosso povo.
 

O Globo, 30/1/2011