Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Hércules exausto

Hércules exausto

 

Com uma simples ida da cama à geladeira, transgredi as regras morais e estéticas


CADA UM tem a frustração que merece: a minha é a de não ter estômago suficiente para comer tudo o que tenho vontade -e na quantidade adequada. Gosto de coisas complicadas, mas não desprezo um caldo de galinha a preceito, com gosto de infância e de mãe. Sempre ouvi dizer que um bom caldo de galinha não faz mal a ninguém. Mesmo assim tenho a cautela de não abusar, reservando-o para momentos especiais.


"Spiritus promptus est, caro autem infirma", dizia o Marcelino de Jesus Caldas, ex-seminarista no passado e teosofista no presente. Se a carne é fraca, o espírito é forte. Já saí do cinema com uma fome de devorar javalis, codornas, carnes finas, raras e -tal como os vinhos que merecem este adjetivo- capitosos.


Outro dia, lendo um péssimo romance de época, saí do tálamo e invadi a cozinha em busca do que mastigar. No livro, o personagem tomava parte num bródio medieval. Além dos citados javalis, havia outras iguarias mastigadas aos pedaços, à luz dos archotes, regadas com vinhos de nobres safras e nobilíssimas origens.


Para despertar a fome, certos filmes e leituras servem. Quando leio a chamada literatura erótica, não costumo me entusiasmar. Pelo contrário: quanto mais picante a história ou a linguagem usada, menos libidinoso fico.


Mas em se tratando de comilanças, quando bem descritas, em ambiente adrede, adquiro uma fome brutal, capaz de devorar vales e montanhas de comida.


Mas a frustração não é por qualquer especialidade. Se assim fosse, eu me abasteceria em qualquer tasca da vida. Devoraria empadas, aqueles ovos cozidos e coloridos dos bares suburbanos, as carrocinhas que vendem o angu do Gomes, os pratos feitos dos botequins suspeitíssimos. Meu apetite, em horas tais, se desloca para pratos esquisitos, o citado javali aparecendo em primeiro plano.


Nunca vi um javali morto ou vivo. Nunca pisei em restaurante ou casa de família em que servissem esse tipo de alimária (desconfio que javali não chegue a ser alimária, mas deixe como está).


Tampouco adivinho o gosto que deve ter a carne de javali. Mas imagino a cena que já li em milhões de livros, assisti em milhões de filmes: a entrada triunfal do espécime, devidamente embalado em enorme travessa de prata do mais fino lavor (se não for prata do mais fino lavor, o javali vira uma... bem, deixe também para lá).


Inchado pelo forno, pelas chamas que aqueceram suas tenras viandas (vai ver que a carne do javali não é tenra, mas, em meus sonhos, ela é tenra, rosada, lambida pelo valor de eficientes braseiros), o animal chega à minha frente. Rasgo-lhe o lombo com destreza, arranco-lhe o naco tostado, cor de ouro.


Nessa altura do devaneio, nem preciso comer o javali, pois já estou empanturrado dos restos do jantar que me serviram. Volto ao leito, prostrado, ofegante como um Hércules exausto. Tomo um antiácido para rebater o peso das carnes ingeridas e durmo em beatitude.


Sonhar -dizia o bardo- é mais ou menos como morrer. Morro feliz, entupido. Penso vagamente que habito uma terra em que 50% da população passa fome ou necessidade de boca.


Curiosamente, essa idéia não me embrulha o estômago. Pelo contrário: aumenta meu obsceno prazer. Em poucos minutos, sem cometer nenhum esforço físico, com uma simples ida da cama à geladeira e vice-versa, consegui transgredir todas as regras morais e estéticas.


Talvez seja isso que me dê maior satisfação: fazer um pacote dos pecados capitais todos, a luxúria, a gula, a inveja, a soberba e os demais -e folgar por nada. E por nada me considerar regalado, ao menos pelo espaço de uma noite e pelo tempo de uma bacanal solitária e estúpida.


Nos filmes de Carlitos, há sempre uma cena em que ele está comendo ou querendo comer. Outro dia, na TV, vi "A Festa de Babette". Na trama, uma ex-chefe do Café Anglais, de Paris, prepara um banquete para convidados especiais. Oitenta por cento do filme se ocupam de mostrar como ela recheava as codornas, fazia a sopa de tartaruga, o patê de fígado de ganso.


Corri à geladeira. Não havia javali no estoque. Enfrentei os restos de um pernil assado e fui dormir como um Hércules exausto, mas saciado.


Folha de S. Paulo (SP) 10/8/2007