Estamos aqui reunidos, nesta cerimônia de adeus, pela soma das virtudes que formaram seu espírito intrépido e generoso. Não são apenas as palavras do presidente da Academia, mas as do outrora jovem professor que se preparava para lecionar história da Grécia. Segui seus livros, Hélio, com encantamento, não apenas os de uma especialidade que não exerci, mas todas as suas reflexões sobre a democracia grega e moderna, sua visão, por assim dizer, goetheana, revestida de ousadia, a desafiar slogans, formas de saber compartimentadas ad nauseam e monocórdias, desprovidas de saltos conceituais e de aventuras. Uma reflexão autônoma, cujo símbolo maior foi seu encontro com Karl Jaspers, rara abertura em nosso meio, cuja sensibilidade interdisciplinar parece ocupar espaço negativamente ficcional. Como não dizer as reuniões de Itatiaia, a criação do Iseb, essa “grande máquina de pensar”, e uma rede de integração cultural com a América Latina, de que o Brasil não deve se apartar, porque se trata de uma origem e de um destino, que não pode prescindir de uma política real de vizinhança e integração. E nessa paisagem, Hélio, um programa dileto ao seu coração: desenvolvimento, distribuição da riqueza, promoção da igualdade, democracia não limitada a um gradiente formal e abstrato. E depois o mundo, caríssimo Hélio, antes e depois do exílio, mas sem perder o território, poroso, sem perder o pertencimento de sua cultura radicada na emancipação de povo e nas instituições republicanas.
Nosso primeiro encontro deu-se em Brasília, quando você delineava um diálogo em rede, entre Oriente e Ocidente, um West-östlicher Diwan, caro a tantas dos que aqui se encontram. Como não recorrer a Candido Mendes, empenhado igualmente, naquela quadra, a encurtar as distâncias da Terra, como pensavam os poetas futuristas.
Seu itinerário tem algo da sinfonia Heroica de Beethoven, um fascinante afresco de ideias, um salto quântico, por assim dizer, uma quebra de paradigma, com as suas últimas direções intelectuais, mediante um ardor geométrico e uma flegma conceitual, sobre o quase épico estudo crítico da história, do ponto de vista hermenêutico e filosófico, ou, ainda, quando esboça uma poética do homem no cosmos, de cuja complexidade e leveza saímos tocados. Atitude rara num cientista social, preso às malhas especiosas de um saber ciumento, de trincheira inamovível. Caro Hélio: você não se limitou a ser guarda de fronteira, a sua antropologia filosófica não quis, não pode, nem tampouco desejou fazê-lo. Você produziu uma ode à liberdade, sinfonia de muitas vozes na partitura de uma derradeira modernidade. Essa coragem instrumental, seu sotaque, seu acento, combinada com um desejo onívoro de conhecimento, desde a métrica de um logos, seminal e rizomático, traduzem a sua estatura, aqueles antigos heroicos furores de que dizia Giordano Bruno.
Perde o Brasil um de seus maiores interpretes, uma lúcida inquietação, sutil e vigilante. Mas o princípio- esperança permanece inalterado. Enquanto não nos faltar esse princípio a sua ausência, Hélio, brilha e nos incita a prosseguir uma leitura radical da história e do cosmos.
Estarei enganado ou parece-me ouvir um inesperado hino à alegria, na sala dos poetas românticos, para dizer que você permanece mais vivo que os vivos?
Alocução do dia 12/09/2018
Sala dos Poetas Românticos