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Hegemonia e civilização do medo

 

Realizou-se na semana passada em Alexandria conferência de pensadores e líderes voltados às presentes tensões do diálogo das civilizações, por iniciativa da Academia da Latinidade. Difícil encontrar-se lugar mais simbólico que o da reunião, na Biblioteca quase mitológica para o encontro entre cabeças do Ocidente e do mundo islâmico a enfrentar a ruptura de pontes do pós 11 de setembro. Todo o debate se desenvolveu sobre o tema da hegemonia e da civilização do medo, tônica que Alain Touraine pôde arrematar pela pergunta: o crescente pavor de agora não coloca em perigo de morte o próprio Ocidente?


Os cenários de qualquer pós Bagdá morrem no pé, tanto quanto não mais se desenha uma remoção dos exércitos da coligação como uma saída do Vietnã. Não se defronta mais o empenho de um povo determinado à sua autonomia contra a invasão americana, mas um terrorismo difuso, cujo principal gatilho hoje se esconde no próprio inconsciente coletivo de uma larga parte do universo. Como superar-se um cenário apocalíptico se não se for ao fundo - como quis fazer a reunião de Alexandria - das idéias-força que enraízam o conflito em toda a reflexão sobre o horror do 11 de setembro?


Importaria, de saída, atentar a como o perigo do pensamento do Salão Oval na cúpula do sistema deveria de mais e mais sofrer o contraponto desta ''Velha Europa'', denunciada como o antagonista possível por Donald Rumsfeld, e de atores tão próximos das raízes da latinidade, a partir da liderança de Paris. Nem é mais possível confiar nos freios das velhas dicotomias da guerra fria, frente à derrubada instantânea dos focos de agressão perseguidos por Washington como os dos nichos do terrorismo. Atente-se, também, a que se confinará o pluralismo do primeiro mundo, na medida em que a entrada hoje dos países eslavos na União Européia, todos aliados dos Estados Unidos, reproduzem o anel das satelitizações comprimindo o eixo Paris-Berlim, mesmo hoje ampliado pelo reforço da Espanha de Zapatero.


Por outro lado, este mundo islâmico já passou pela revolução khomeinyana, que resgatou, para toda esta área cultural, a ressurgência de um macro-ator social íntegro, tal como não sucumbiu nas seqüências da cruzada ocidental ao temido Jihad muçulmano. Alexandria mostrou como existe hoje uma amplíssima presença crítica e intelectual do mundo árabe a fornecer à sua intelligentsia toda a reflexão da pós-modernidade, desmontando os preceitos ocidentais dos fundamentalismos sumários.


O Mediterrâneo, no corte certo de Alexandria, quer ser uma bóia de um mais além, ou de uma mirada de onde possam recomeçar os helenismos que, afinal de contas, garantiram para a humanidade a superação das dominações, guardando o melhor do seu progresso, sem a perda de sua consciência. Foi o ''mais da civilização'' que levou à melhor sobrevivência do mundo greco-romano, depois da queda do Império, como, após a hegemonia árabe, entregou a antigüidade ao Renascimento, e assistiu ao invento do Estado-nação. Dele surgiu, no século XIX, a força dos povos, por sobre a dos príncipes, na fermentação da democracia contemporânea.


É tão comum falar-se em políticas de reafirmação do mundo islâmico, como, no seu fundamentalismo, subestimar essa tensão crítica permanente entre a razão universal e o que, no radicalismo identitário, substitui-se a autêntica convivência com a modernidade. Ao mesmo tempo, perdeu-se o confronto entre as maravilhas do engenho ocidental, em primeira, ou segunda mão, na medida em que desapareceu a competição soviética, que se tinha esmerado num conjunto de obras opulentas, para associar-se à independência nacional, de muitos desses povos islâmicos. Esbateram-se após a guerra fria. Mas a hegemonia de Washington aparta-se de qualquer garantia de estabilidade, após a derrubada de Saddam.


O repúdio dominante do terrorismo e, sobretudo, na sua exasperação pela Al-Qaeda - inexistente uma frente única de protestos radicais - soma-se à crença de que a volta à estabilização não se possa dar à margem das Nações Unidas, e sobretudo da forte presença das próprias nações islâmicas, nessas tarefas, nas áreas matrizes do conflito. Sobretudo, Alexandria deixa a nu este derradeiro preconceito hegemônico, que é o de entregar ao Ocidente a defesa da ordem mundial. O pluralismo que se persegue, como a alternativa as cruzadas, dá outra composição às forças de paz - e a um verdadeiro internacionalismo que a assegure, sob pena de se assentar a definitiva civilização do medo, baixada, para além das bombas, no inconsciente coletivo da desconfiança sem volta.


Jornal do Brasil (RJ) 19/4/2004