Na zona norte de Porto Alegre existe uma loja que vende manequins. Ali estão vários deles, na vitrine, nus (mas sem genitália: o pudor se impõe), a fitar-nos com seu sorriso fixo. Uma visão no mínimo incômoda, e que explica uma cena muito comum em antigos filmes de terror: fugindo dos bandidos, o mocinho ou a mocinha se refugiava em algum depósito escuro, cheio de manequins, e a visão destes, suas faces imóveis sinistramente iluminadas por uma débil claridade, contribuía para reforçar o clima de pesadelo.
Mais recentemente, a palavra manequim começou a ser empregada para as moças que participam em desfiles. E, num certo sentido, é adequada. Porque a indústria da moda transforma essas jovens em autômatos, em máquinas de desfilar portando os vestidos que estão sendo oferecidos ao público. A maneira de desfilar é rigidamente padronizada. Lá vêm as moças, fisionomia absolutamente impassível (sorrisos obviamente são proibidos), caminhando num passo de ave pernalta e exibindo um corpo que, inevitavelmente magro, é considerado paradigma da beleza. Manter essa magreza, nós sabemos, transforma-se numa verdadeira obsessão e nos casos mais extremos acaba conduzindo à anorexia, aquela recusa patológica do alimento que pode ter consequências catastróficas, como mostrou, em 2006 o caso da modelo Ana Carolina Reston Macan. Ansiosa por ajudar uma mãe desempregada e um pai com Alzheimer, Ana dependia muito da passarela, e, em consequência, de sua imagem corporal. Comia cada vez menos, vomitava o que comia. Acabou morrendo.
Essas coisas vêm à lembrança agora que a supermodelo Gisele Bündchen deu à luz um menino, fruto de seu casamento com Tom Brady. O anúncio da gravidez, lembrem, gerou uma discussão: o que aconteceria com a carreira de Gisele? Poderia ela manter a aparência que a tornou famosa? Dizia-se inclusive que suas fotos haviam sido retocadas para não mostrar o ventre grávido.
Engravidar não deve ter sido, portanto, uma decisão fácil para Gisele Bündchen. O fato, porém, é que ela resolveu assumir plenamente sua condição de mulher, tornando-se mãe. O que representa isso em sua vida pessoal só a própria Gisele sabe. Mas, o que isso representa na conjuntura cultural que envolve o mundo da moda, nós podemos deduzir. O fato é que, consciente ou inconscientemente, Gisele Bündchen deu-nos um recado: modelos não são robôs, modelos são pessoas, que têm desejos, têm aspirações. Há vida na passarela, e esta vida não se resume a um desfile impassível diante de espectadores e de câmeras.
Comparem a situação de Ana Carolina com a de Gisele. De um lado, a anorexia; de outro, uma opção existencial capaz de incluir a pessoa na grande corrente da vida, uma corrente que vem de um passado muito remoto e projeta-se para o futuro, por mais incerto que seja. Se Ana Carolina estivesse viva, e se soubesse da notícia do nascimento do filho de Gisele, ela esboçaria, mesmo que estivesse desfilando, e mesmo contra a vontade de seus patrões, um tênue sorriso. O sorriso que poderia ter sido a sua salvação.
Zero Hora (RS), 15/12/2009