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Há sangue em cada notícia

 

Concordo que a simples redução da maioridade penal não vá resolver o problema da criminalidade juvenil no país, mas concordo também que a legislação atual precisa ser alterada para não permitir que fiquem impunes crimes hediondos como o desse jovem suspeito de ter assassinado o médico Jaime Bold na segunda-feira a facadas, como se o autor fosse um soldado do Estado Islâmico, especialista no uso da arma branca para suas bárbaras execuções. Como manter livre, sem sequer uma internação, alguém que, aos 16 anos de idade, já tem 15 passagens pela polícia, várias por roubo à mão armada com faca?

Quando isso, que deveria ser uma rara anomalia, se torna rotina na cidade, acontecendo não uma, duas ou dez vezes, mas 167 só nos primeiros quatro meses do ano, é porque se trata de uma grave doença. Os dados são da Secretaria municipal de Saúde. No Hospital Lourenço Jorge, na Barra, foram 73 atendimentos de vítimas de faca. No Souza Aguiar, no Centro, 43 pessoas. No Miguel Couto, na Gávea, 37. No Salgado Filho, no Méier, 14. Antes de Gold, só na Lagoa houve mais três ataques. O francês Victor Didier teve os dois pulmões perfurados, perto do Jardim de Alah, onde dias depois outro homem acabou ferido. No Corte do Cantagalo, seria a vez do remador Felipe Schuchmann, de 14 anos. E ontem mesmo de manhã, na Praça Paris, uma jovem chilena também foi esfaqueada num assalto. Sabendo que existe uma permissividade legal que não considera crime portar arma branca, os bandidos lançaram a moda do assalto prático e barato.

Diante da nova onda de violência, pode-se dizer, parodiando Mário de Andrade (“há uma gota de sangue em cada poema”), que atualmente há uma gota de sangue em cada notícia sobre o Rio de Janeiro. Ou “uma poça de sangue”, como a da foto que O GLOBO publicou na primeira página de quinta-feira. Ali, manifestantes indignados reproduziram no chão com tinta vermelha a mancha emblemática que envergonha um de nossos cartões-postais.

Por que esse crime produziu tanta revolta nos cariocas, se foi “apenas” mais um de uma estatística que sempre se atualiza? A resposta talvez esteja na carga simbólica que envolveu toda a tragédia, a começar pelo cenário, um espaço de lazer muito frequentado por ciclistas e caminhantes, inclusive na hora em que o crime aconteceu. A “mensagem” é que não há lugar seguro hoje no Rio de Janeiro. A outra contradição chocante é em relação à vítima, uma pessoa do bem, querida pelos porteiros, vizinhos, colegas de trabalho, enfim, por todos os que o conheciam. Aos 56 anos, o cardiologista Jaime Bold tinha como missão salvar vidas e, pelos depoimentos, fez isso inúmeras vezes. Como disse a ex-mulher, Márcia Amil, “é uma loucura uma pessoa que salva vidas, quaisquer vidas, morrer de uma forma dessas”.

O Globo, 23/05/2015