Um dos piores sintomas de deterioração de nossa democracia está na exploração da religião como instrumento político eleitoral. A ambiguidade do presidente Jair Bolsonaro, que se diz católico, mas foi batizado nas águas do Rio Jordão por um pastor político que já preparava seus movimentos rumo ao poder em Brasília, foi destacada ontem pelo arcebispo de Aparecida.
O presidente que tenta a reeleição abusando da fé dos eleitores é intempestivo, virulento, incontrolável. Mas sua loucura tem método, como definiu o personagem Polônio a respeito de Hamlet, na peça de Shakespeare. A aproximação com o povo evangélico aconteceu como um dos instrumentos de sua estratégia eleitoral, pois foi batizado em 2016, dois anos antes da eleição presidencial.
O Pastor Everaldo, que acabaria preso no ano seguinte, era o presidente do PSC. Já naquela altura os índices indicavam que os evangélicos tinham um crescimento acelerado entre a população urbana mais vulnerável, pobre, jovem e feminina. Os católicos decresceram e pela primeira vez aparecem com 49, 9% das filiações religiosas em 2022, abaixo de 50%, e os evangélicos apresentam percentuais de 31, 8% (há quem diga que já representariam cerca de 37% da população).
Bolsonaro avança sobre esse eleitorado explorando sua precariedade, mas também aproveitando-se de um ambiente religioso que estimula o empreendedorismo e valoriza a prosperidade com promessas vãs, mas apoio espiritual aos necessitados e um trabalho de assistência social efetivo. O que aconteceu ontem na Basílica de Nossa Senhora Aparecida, com militantes bolsonaristas vaiando do lado de fora a homilia do arcebispo Orlando Brandes, é a exemplificação grosseira da perda de controle diante do sagrado, que se torna apenas uma motivação eleitoral.
O arcebispo orava pela derrota dos diversos 'dragões': da fome, do desemprego, do ódio, da mentira. Do lado de fora, brigas físicas, perseguições, numa demonstração clara de que se fazia ali não um ato de fé, mas um ato eleitoral qualquer, mais um. Bolsonaro já havia pegado carona em outro dia importante para os católicos, a procissão do Círio de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém, no Pará.
Como é uma fragata da Marinha que tradicionalmente transporta a imagem da santa, Bolsonaro, sem ter sido convidado, usou a prerrogativa de presidente para impor sua presença na embarcação oficial. Mais uma vez os militares aceitaram ser usados com fins políticos por Bolsonaro, como quando o Exército promoveu aquele vexaminoso desfile de tanques fumacentos em Brasília ou aceitou mudar o desfile do 7 de Setembro no Rio para atender ao interesse do presidente, que transformou a solenidade em ato político na Zona Sul do Rio.
Parte dos evangélicos se presta a esse desfrute, pois está envolvida na política partidária. A Igreja Universal tem até um partido político, o Republicanos, presidido por um bispo bom de voto, Marcos Pereira. O Pastor Everaldo continua na ativa, presidindo o PSC e com grande influência na Assembleia de Deus. Nessa guerra religiosa, o ex-presidente Lula, que é católico, está às voltas com uma dúvida fundamental: fazer ou não uma declaração oficial sobre o papel das religiões num eventual futuro governo do PT, que tem sido acusado de pretender fechar templos a exemplo do que já fizeram alguns líderes esquerdistas, como Daniel Ortega na Nicarágua.
Ontem circulou uma carta aos católicos a propósito do dia da padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida. Lula garante que respeitará a Constituição, que afirma ser 'inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na formada lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias'.
. A questão, porém, continua polêmica no interior da campanha petista, tanto que o documento divulgado não é apontado como oficial, embora digam que Lula o aprova. Há quem considere que Lula não deve entrar nessa guerra religiosa, e outros que querem uma carta 'aos cristãos', não apenas aos católicos ou evangélicos.
Bolsonaro trafega nesse espaço religioso sem pudor e retira apoio das presenças em cultos e cerimônias religiosas, pois sempre há quem veja na sua aparição pontos positivos. O que fica disso tudo é o retrocesso em nossa democracia quando líderes populistas se envolvem com a religião. A então presidente Dilma, depois de eleita em 2010, mandou retirar do gabinete do Palácio do Planalto uma Bíblia e um crucifixo, alegando que o Estado brasileiro é laico. No entanto, durante a campanha que a elegeu, foi atrás de votos de católicos e evangélicos, que àquela altura apoiavam Lula.
O que fica disso tudo é o retrocesso em nossa democracia quando líderes populistas se envolvem com a religião.