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Gripes e Gripados

 

Apesar dos muitos e desnecessários anos que carrego nas costas, não cheguei a este mundo a tempo de pegar a espanhola, com a qual a gripe suína, agora com um nome cabalístico e esterilizado, vem sendo comparada. As duas nada têm a ver, pelo menos até agora, e pelos depoimentos dos contemporâneos da peste.


Passei a infância ouvindo relatos de sobreviventes, que era a população inteira do Rio daquela época. Os mortos eram empilhados na porta da rua para que a prefeitura os removesse. O serviço municipal entrou em pane, o jeito era os parentes pegarem o falecido e um bonde que passava de manhã e de tarde: botavam o corpo lá dentro e o bonde seguia cheio de mortos até uma vala aberta pela Saúde Pública. Não precisavam pagar passagem, que era de dois tostões, tabela da Light&Power, que os jornais gostavam de chamar “Polvo Canadense”.


Mário Filho, autor do clássico O negro no futebol brasileiro, que deu nome ao estádio do Maracanã, irmão de sangue do Nelson Rodrigues e meu irmão por consenso mútuo, tinha o projeto de escrever um romance cujo título seria O Carnaval de 1919. Segundo Mário, no ano seguinte à gripe, aqueles que sobreviveram à peste, mas sentiram o hálito da morte no pescoço, entregaram-se a depravações compensatórias. Orgias coletivas e desesperadas, nas quais valia tudo. Procuravam esquecer os meses em que a vida de todos estava por um fio, ninguém passava daquela noite: o sujeito ia atravessar a rua em plena saúde, chegava definitivamente morto na calçada oposta.


Nem um presidente da República escapou da peste. Desse susto não devemos temer. Lula já garantiu que tanto a crise econômica como a gripe são coisas dos outros.


Folha de S. Paulo (RJ), 10/5/2009