Esta gripe está tendo desdobramentos inesperados, proporcionando até oportunidade para que os assaltantes usem máscaras, o que pode fazer bem para a saúde deles, mas é um desastre para o bolso dos assaltados. E, falando em desdobramentos inesperados, olhem só o que escreveu na Folha de S. Paulo o Carlos Heitor Cony, grande escritor, grande jornalista e grande amigo. O título é “Scliar e Bush”: “O Moacyr Scliar, como excelente médico sanitarista, me ensinou que devia lavar as mãos cuidadosamente, várias vezes ao dia, para evitar entre outros males a gripe suína. Não bastava lavar a palma, é preciso lavar as costas da mão, os pulsos, o espaço entre os dedos. Na noite daquele dia, sonhei que estava no banheiro do restaurante Alcaparra, no Flamengo, e lavava as mãos rotineiramente quando entrou, nada mais, nada menos, do que o presidente George Bush, pai. Ele começou a lavar as mãos, na pia dele não havia sabonete, pediu-me o que estava comigo. Passei-lhe o sabonete e ele lavou as mãos com esmero, seguindo os conselhos do Moacyr Scliar e silenciosamente me reprovando o fato de não ter feito o mesmo. O sonho terminou aí, mas passei o dia meditando sobre o insuportável destino humano, que faz um cidadão misturar o Scliar e o Bush pai na sequência de um mesmo sonho. Tenho certeza de que o Scliar não mantém qualquer tipo de relação com o ex-presidente. Penso no meu querido amigo Scliar, preocupado com a minha saúde e com a saúde da plebe em geral. Nunca pensei em Bush, nem no pai, nem no filho nem no espírito deles”. E termina o Cony: “Como fui misturar tudo isso num sonho que me obrigou não somente a lavar as mãos novamente, mas a alma, o coração e o gesto?”.
Lendo o texto do Cony, lembrei um conto do americano Delmore Schwarz: chama-se Nos Sonhos Começam as Responsabilidades, título que o Freud adoraria. Pois o sonho do Cony implica responsabilidades; afinal, Bush pai segue, ainda que indiretamente, meus conselhos. E isso me dá culpa. Por que não comecei a lhe dar conselhos há mais tempo? Eu poderia, Cony, ter evitado a Guerra do Iraque, a prisão de Guantánamo, quem sabe até a crise econômica. Mas não, limitei-me à higiene das mãos, não à higiene moral, e agora o Obama vai ter de fazer o que eu não fiz. Que vergonha, Cony, que vergonha.
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A controvérsia do Tamiflu – quando usar, em quem usar – se ampliou. Em Foz do Iguaçu, em Brasília e em outros lugares, o remédio está sendo usado fora do protocolo do Ministério da Saúde. Ao mesmo tempo, noticia-se que vírus da gripe resistentes ao Tamiflu apareceram no Japão, na China, no Canadá e na Dinamarca. O que serve de advertência: o uso do medicamento deve ser feito de forma disciplinada. Isto não impede que o medicamento seja ministrado de forma alternativa, em caráter, até, de pesquisa. Mas para tanto é preciso que o uso também obedeça a um protocolo paralelo, elaborado com base científica e, muito importante, aprovado pelos órgãos de saúde. É uma questão de racionalidade e de bom senso, coisa que não podemos perder neste momento.
Zero Hora (RS), 4/8/2009