Minas Gerais não merecia ser o cenário do espetáculo mais constrangedor de resistência do terceiro poder à abolição do nepotismo, confirmado pelo Supremo Tribunal Federal e pela consciência cívica do país. Não precisava o Tribunal de Belo Horizonte passar da caricatura ao grotesco, na greve contra a Resolução 7 do Conselho de Justiça, que já hoje passa à história do avanço das instituições brasileiras. A próxima Conferência Internacional de Gotemburgo, dedicada aos modelos políticos do nosso tempo, já anotou esta conquista, como índice do amadurecimento irrevogável de nosso Estado de Direito. Trata-se do avanço desse controle externo, entre os poderes como garantia, exatamente de evitar-se o seu endurecimento como corporação. Ou fazer do serviço público a cosanostra, e em proveito por empregos e benefícios.
O Legislativo e o Executivo têm, de qualquer forma, o gume, ainda que longínquo das eleições, e da renovação, ou não, do mandato ímprobo, ou ao arrepio de um eleitorado crescentemente atento à ética política. Dele escapa, entretanto, o Judiciário, cujas vantagens, e irredutibilidade de vencimentos podem também, num país subdesenvolvido, ser o último fortim da impunidade, e da vantagem do feudalismo moribundo do velho Estado colonial. A criação do Conselho Nacional de Justiça responde à luta contra o abuso da função pública que tendeu a ficar na penumbra da força da defesa aos direitos individuais, enfatizado pela Carta cidadã do Dr. Ulysses.
Estes anos, agora, de aperfeiçoamento democrático, são o de fazer-se valer o artigo 37, da Lei fundamental, que cria a obrigação do poder público de velar pela moralidade e impessoalidade do provimento dos cargos públicos. Realista, a Carta de 88, ao mesmo tempo que tornava imperativo o concurso, para toda função pública estável não ia além de recomendar este princípio para as funções gratificadas e as funções de confiança. Temia, ainda, o velho rondó familístico, do preenchimento dessas prebendas, em que a privatização da função pública perdurava, teimosa, neste atraso secular da modernização do Estado, no seu atendimento da tarefa, por sobre o interesse dos seus prestadores imediatos.
A Resolução nº 7, hoje, de impacto internacional, começa pelo veio mais fundo deste desvio avuncular dos aparelhos de poder. Erradica, finalmente, o vínculo de família, impedindo o contrato da parentela na linha reta, e até o terceiro grau. A descontaminação é imposta ao magistrado, como a diretores das máquinas judiciárias, e estende-se às contratações de empresas, onde repique o sangue do Judiciário interessado. Sobretudo, e em todo realismo, já calcinou o favorecimento cruzado em que começaria a dança dos favores, entre os juízes de uma Corte a constatar, em vice-versa gentil e permanente, as esposas e a prole da outra grei. Trata-se, de vez, de virada de página da consciência nacional que sepulta com todos os epitáfios, e para estupefação toda do país, a intentona de Belo Horizonte.
Lamentavelmente, entretanto, a probição, levantada pelo Conselho Nacional de Justiça, corre parelha à insolência com que os mensalões vão se manter no Legislativo, e no outro veio da privatização das vantagens e benesses do poder público. Se se derrubou o convescote familiar, o nepotismo permanece intocado, afinal, e modernizado até no mecanismo das clientelas, deixadas no ninho quente os cargos públicos no Congresso e no Executivo. Se o favoritismo sanguíneo acaba, apesar de Minas Gerais, o compadrismo político ganha uma nova vida, depois da vergonha nacional dos acordões, no resultado pícaro das Comissões de Inquérito, a resistir, ainda, à sua morte morrida.
Deveu-se ao valerioduto a modernização do tráfico objetivo do interesse político no Legislativo. Não se fica, apenas, no velho coronelismo, de trazerem as chefias vencedoras o seu farrancho para os cargos públicos, abarrancando sempre nas prefeituras, estados e gabinetes federais a facção vencedora, borzeguins todos ao leito, dos salários e gratificações do orçamento, na congestão deficitária de todas as Repúblicas. O mensalão veio para ficar, pois passa, enterrado, no nível da consciência majoritária desse Congresso, que não vê provas da sua prática, por libidinosas que sejam os recibos bancários e a sincronia das contas dos beneficiários, dos 20 mil do Prof. Luizinho ao milhão das manigâncias dos PTBs e dos partidos aliados do situacionismo. Fique, tão só, o irrecusável de quem confessou a pajelança e, mesmo assim, só vai ao cutelo da cassação, pelo mínimo de votos em que os plenários tentaram ressalvar o seu próprio decoro. A democracia, claro, não avança num dia e a clientela continua nos ''caixas 2'' de todos os tempos, guarnecido agora para as campanhas do facilitário semântico das ''despesas não contabilizadas de campanha''.
A consciência cívica do país acordada e ferida pela queda do nepotismo, e pelo ''bem-bom'' ainda dos mensalões depara uma agenda mais funda de impaciências, em que a mobilização política pode dar um último recado aos Legislativos complacentes. Na toada atual dos ibopes, o Congresso que manteve as clientelas, não deverá ter mais de 6% da sua atual ribalta trazida ao novo Parlamento brasileiro.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 22/03/2006