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A grandeza moral de Gil

 

Além das qualidades evidentes de sua obra literária na música popular brasileira, e a valorização da cultura afro como integrante fundamental da cultura nacional, Gilberto Gil deu demonstrações na sexta-feira, dia de sua posse na Academia Brasileira de Letras, de generosidade e elegância em seu discurso, ao abordar dois temas delicados de sua relação pessoal com a história da ABL.  

Quando surgiu a possibilidade, que já havia sido acalentada muitos anos antes pelo então presidente da ABL, Marcos Vilaça - a quem Gil agradeceu em seu discurso -, de indicá-lo para se candidatar a uma das cinco vagas abertas durante os dois anos de fechamento devido à pandemia, seus apoiadores preocuparam-se de evitar o encontro que acabou acontecendo, por esses sortilégios do destino.

Gil, devido a composições por causa de datas e outras circunstâncias, concorreu à cadeira 20, vaga com a morte do jornalista Murilo Mello Filho, que teve como antecessor o General Aurélio de Lyra Tavares. Como a tradição manda que o acadêmico entrante relembre seus antecessores, o que fez com que Darcy Ribeiro dissesse que por isso somos imortais, Gil teria que falar do General que compôs a Junta Militar que governou o Brasil de 31 de agosto a 30 de outubro de 1969.

Lyra Tavares era ministro do Exército quando Gilberto Gil e Caetano Veloso foram presos, em dezembro de 1968, depois de decretado o AI-5. Ficaram na cadeia de 27 de dezembro de 1968 a 19 de fevereiro de 1969, depois foram confinados na Bahia, até viajarem para o exterior, em julho de 1969. Teve os direitos políticos cassados, assim como Caetano Veloso, ainda com Lyra Tavares ministro do Exército, tendo-os recuperados com a anistia em agosto de 1979.

Muitos acadêmicos na história da ABL deixaram de citar algum de seus antecessores, e até mesmo criticá-los. Mas Gilberto Gil enfrentou a armadilha armada pelo destino com elegância e generosidade. Disse ele a respeito de seu antecessor: “ A mim, na condição de vítima da repressão militar que tomou conta do Brasil a partir de 1964, a ponto de ter sido preso, e em seguida obrigado a deixar o país em julho de 1969 – assim como fizeram outros amigos meus, entre eles Caetano Veloso – me causou a princípio um certo desconforto o ter de tratar aqui de um dos três integrantes da Junta Governativa Provisória que comandou o Brasil de 31 de agosto a 30 de outubro de 1969”.

“Mas, ao contrário, na constatação de como gira, às vezes com ironia, a roda da História, do ponto de vista acadêmico, os que conheceram e conviveram com o general Lyra Tavares nesta Casa reiteram o seu comportamento sempre afável e solidário, sua cultura literária e histórica e sua dedicação aos valores que balizam a história da ABL.”

Em outro momento de seu discurso, também enfrentou com galhardia uma “saia justa” , relembrando que em maio de 1968, na capa do seu segundo LP, e já integrado à Tropicália, aparecia envergando um fardão e usando pincenê. Muitos de seus apoiadores, por sinal, temiam que essa capa pudesse causar prejuízos à sua campanha, o que não aconteceu. Ao recordar esse episódio, Gil escreveu um poema especialmente para sua posse na ABL, 52 anos depois:

 

Sempre houve críticas à Academia,

que a Casa de Machado não faria jus

ao sonho que sonhara ser um dia:

todos ali representados por alguns.

 Tal ampla representatividade

sonhada por Nabuco e demais fundadores

jamais fora alcançada de verdade,

jamais todos os saberes e sabores.

Eu mesmo, nos meus tempos de aventuras,

cheguei a envergar um garboso fardão,

vestido então como ironia dura,

a fantasia pura da ilusão!

 Juntava-me, naquele instante, aos muitos

que alfinetavam a Instituição

mal sabia eu quais os intuitos,

do destino astuto a interrogação.

 Um amigo lembrou-me outro dia

que as ironias sempre trazem seu revés.

Papéis trocados, eis aqui, vida vadia:

fardão custoso, bordado a ouro, vistoso,

me revestindo da cabeça aos pés.

Gestos de grandeza moral que servem de exemplos para os dias de hoje.

O Globo, 10/04/2022