Às vezes, temos necessidade de um choque radical para compreender melhor o que já estava diante de nossos olhos. Como o papel civilizatório de Diego Armando Maradona. Além do craque de bola que ele foi, a base moral de seu comportamento no mundo, Maradona foi um permanente inquisidor da alma humana. Quase diria que se sacrificou por nós, latino-americanos, devedores de tantos poderosos que sempre admiramos pelo mundo afora.
Não é que Maradona não desejasse ser conquistado, como o foi tantas vezes, como todos nós. Mas ele queria entender o mundo à sua volta e, para isso, precisava saber por que os homens poderosos amavam e eram amados pelo povo que cultivava Maradona. Nosso herói não era de esquerda, de centro ou de direita; mas se interessava pelas pessoas que professavam tais ideias. Não pelas ideias, mas pelo povo que elas conquistavam, do qual se aproximavam.
Se procurarmos na vasta coleção audiovisual em que o registramos, vamos encontrar cenas em que Maradona se declara a Fidel, de quem tinha uma tatuagem na perna esquerda, justamente a perna genial. Ou confissões de amor a dirigentes políticos como Carlos Menem, um neoliberal populista e popular, a quem ajudou a se eleger presidente da Argentina. E ainda oferecendo ao general Videla, comandante da ditadura mais sangrenta na história de seu país, o título mundial conquistado em Tóquio pela seleção juvenil.
A televisão argentina não se cansava de mostrar Maradona a cantar hinos peronistas, a defender os Kirchners, a se deixar usar pela máfia italiana quando jogava pelo Napoli, a fazer oposição contundente a Macri, a dedicar sua autobiografia ao xeque Mohammed bin Rashid al-Maktoum, cruel ditador árabe, a quem agradecia por “brindá-lo com seu apoio”. Maradona beijava o desconhecido, como beijou o Papa Francisco na bochecha, quando o conheceu, e o atacante Caniggia na boca mesmo, quando este fez, de uma assistência sua, o gol que desclassificou o Brasil na Copa de 1990.
Por meio de seus amigos, de direita, de centro ou de esquerda, por meio da Camorra ou da Igreja, Maradona se aproximou sempre de quem o povo admirava ou simplesmente amava de algum modo, por alguma razão. A única vez em que respondeu à pergunta de repórter sobre as consequências de sua morte, ele disse que queria apenas que em sua lápide estivesse escrito: “Gracias a la pelota”.
Acho que o que ele queria mesmo era entender, por meio de quem o povo amava, o povo que o fez tão grande. Ele se manifestava pela sua genialidade no futebol, o que o aproximava de todos, do “pibe” do Boca aos senhores do mundo. Mas ele queria entender o que era a Humanidade, e essa curiosidade talvez o tenha matado. Nunca entenderemos tudo o que se passa no mundo.