José Goldemberg chega aos 90 na plenitude do vigor de sua personalidade e da multiplicidade das suas competências. São ingredientes que dele fazem uma grande personalidade brasileira, que tem captado e exprimido significativas tendências contemporâneas, ao inserir o papel da ciência na pauta do País. Destaco sua antevisão da relevância e do impacto trazidos pela velocidade com que a cultura científica e tecnológica, ao ampliar continuamente os horizontes do conhecimento, altera, tanto positiva quanto negativamente, as condições de vida na Terra.
Nesse âmbito, um campo fundamental é o da energia e composição da matriz energética, ingrediente-chave do desenvolvimento sustentável e matéria da recorrente dedicação de Goldemberg. É o que explica por que a capacitação científico-tecnológica em geral, e muito especificamente no tema da energia na sua multidisciplinaridade – fruto da interação energia-desenvolvimento-meio ambiente –, é variável crítica para uma sociedade ter um papel de controle do seu próprio destino.
No Leviatã, Hobbes entende que a razão pode ser definida como a faculdade de estimar as consequências. Goldemberg formou-se em 1950 na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP – concebida por seus fundadores para se converter num “organismo concatenador da mentalidade nacional” e que, por isso, veio a ser um grande centro de estudos científicos do País. Ele cumpriu essa aspiração e o seu começo explica os desdobramentos no tempo das suas atividades. Tornou-se físico nuclear e passou a integrar o pequeno círculo dos brasileiros dedicados a essa fronteira de conhecimento. Aperfeiçoou-se no exterior, realizando pesquisas com potencial de aplicação e cumprindo a seguir as etapas da vida universitária. Dessa experiência tirou as consequências para o nosso país ao fazer da capacitação, em sentido amplo, o tema recorrente da sua trajetória de professor, pesquisador, homem público e intelectual empenhado na res publica. Imprimiu rumos aos acontecimentos fazendo do bom uso do conhecimento o caminho da sua liderança. Liderança provém do inglês to lead, guiar, mostrar o caminho. O reconhecido prestígio nacional e internacional de Goldemberg como cientista e pesquisador – que desvendou o papel do etanol como fonte de energia renovável e limpa – contribui para sua liderança, mas não a explica. Liderança é ação e o agir do líder bem-sucedido é pôr as coisas e as pessoas em movimento elaborando um papel e promovendo o contexto no âmbito do qual ele pode ser exercido, contando com o apoio de colaboradores. No caso de Goldemberg, sua liderança é do tipo inovador e precursor. Desse modo, abriu em nosso país válidos caminhos irradiadores do alcance do “Scientia vinces”, o lema inspirador da USP.
O reconhecimento dos seus pares levou à sua eleição como presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), cabendo pontuar que na sua gestão, de 1979 a 1981, soube defender no regime autoritário a ciência e os pesquisadores e, com o lastro do conhecimento da sua formação, sustentou a utilização da energia nuclear exclusivamente para fins pacíficos, o que veio a ser consagrado na Constituição de 1988.
Cabe registrar que antes, no governo Geisel, se opôs ao Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, apontando que não foi elaborado com a colaboração dos cientistas nucleares, ou seja, desconsiderou o indispensável papel da ciência na diplomacia do mundo contemporâneo, e por isso acabou não favorecendo o domínio da tecnologia, isto é, não levou em conta a variável da capacitação científico-tecnológica, tema recorrente de seu percurso.
No governo Franco Montoro presidiu (1982-1986) as companhias de energia do Estado de São Paulo e soube combinar conhecimento e gestão, sempre um grande teste de um professor confrontado com os problemas da administração. De 1986 a 1989 foi notável reitor da USP. Deu realce ao mérito na formação de recursos humanos e na avaliação de docentes e pesquisadores; soube conferir à USP uma apropriada e institucionalidade estatutária e regimental; obteve recursos para ampliar sua infraestrutura física e seus equipamentos. E com abertura para a multidisciplinaridade, criou inovadoramente o Instituto de Estudos Avançados.
Foi a partir do patamar construído à luz dessas experiências que passou a exercer novos e relevantes cargos no campo governamental, no plano federal e estadual, o que o tornou um curinga, apto a exercer responsabilidades em funções que exigem a autoridade do conhecimento e a capacidade de formular políticas públicas.
Não vou delas me ocupar pelas limitações de espaço, mas quero mencionar sua atuação como ministro da Educação que se afastou da rotina e da política de clientela e sua participação na Rio-92, a grande conferência diplomática da ONU sobre temas globais – a primeira depois do fim da guerra fria e de suas polaridades – que o Brasil sediou com sucesso. Ela contou com a decisiva participação de Goldemberg na condição de responsável por meio ambiente, ciência e tecnologia. Disso dou meu testemunho como ministro das Relações Exteriores na época e vice-presidente ex officio da conferência. A lida com o desafio diplomático de inserir e efetivamente consolidar, com visão de futuro, a agenda do meio ambiente e do desenvolvimento sustentável na pauta internacional foi o duradouro resultado da Rio-92. Ele só foi possível pela inserção da ciência e do conhecimento na diplomacia multilateral, que na Rio-92, na atuação do Brasil, resultou do conhecimento e da liderança de Goldemberg. Daí a fecundidade de nossa parceria.
Essa parceria vem se prolongando no tempo, adensou-se no período em que me coube presidir a Fapesp e adquiriu contornos adicionais agora que ele a preside com seu talento, liderança e alto espírito público. Na sua gestão, a Fapesp vem imprimindo os abrangentes rumos da sustentabilidade, tão necessários para cumprir sua missão como uma grande e republicana agência de pesquisa de nosso país.