A primeira década deste novo século nos mostra o seu passivo de espantos: a queda das torres de Manhattan; a sobrevinda de um terrorismo exasperado, até o martírio, pelos testemunhos vingadores de um reconhecimento coletivo sufocado; o retorno das teocracias, trazendo de volta o político ao transcendente; o recuo da cidadania diante do desfraldar migratório e da possível irrupção de novas "guerras de religião".
Uma nova arquitetura da globalização está sendo desenhada, voltando-se, no longo prazo, às coexistências internacionais não hegemônicas e questionando esta expansão do multiculturalismo, " cujo imperativo da diferença se junta ao da liberdade, modelada pelo imperativo contemporâneo da democracia.
Nesse cenário, registramos uma verdadeira desconstrução das totalidades, com o surgimento de iniciativas que rompem com a primeira globalização hegemônica. Poderíamos reconhecer essas diferenças emergentes no desafio dos Brics frente ao velho Salão Oval de Bush; no relance da Turquia no Mediterrâneo, pela recusa da absorção européia; no vazio africano perante o fracasso do Estado-nação pós-colonial; no reagrupamento fundamentalista, redutor desse mesmo Estado-nação, a partir das repúblicas bolivarianas da América Latina; nas regressões dos reconhecimentos das subjetividades coletivas nas migrações, com que deparará a globalização emergente.
Por outro lado, a América de Obama, na sua flexibilidade, deixa claro que persiste a meta do Império dos Estados Unidos, com o seu modo de tratar como verdadeiros proletariados exteriores, mantidas numa marginalidade e numa semi-cidadania permanente, as ondas incessantes de mexicanos.
A nova ordem internacional questiona, hoje, uma hegemonia antiquada, com o advento de um universo cujo jogo de interações é tanto equilibrado quanto sustentado, em que os Brics ultrapassam completamente os confrontos já conhecidos e usuais, com a linearidade clássica das dominações imperiais que deram suas feições à história do Ocidente.
Até onde, em reação claramente defensiva, a inércia hegemônica se refugia, instintivamente, em um novo fundamentalismo matricial, quando se afasta de todo o multiculturalismo, ao reduzir suas identidades de forma crescente? É o sinal que nos manda a Alemanha neste último semestre de 2010, com o discurso de sua primeira-ministra, Angela Merkel, opondo-se formalmente a todo maior " enraizamento de diferenças, no futuro do país, e, sobretudo, refugando a incorporação muçulmana.
Deparamos, hoje, uma realidade histórica desprovida dos contrapontos fáceis entre centro e periferia, e, portanto, das localizações clássicas da dominação.
À rejeição do multiculturalismo, acrescenta-se, agora, a crise essencial do modelo neoliberal, surdo diante da procura dessas alternativas, e diante da razão crítica de um modelo nostalgicamente desejado dos anos de ouro das três últimas décadas do século XX.
Ingressamos neste mundo dos Brics voltados ao estrito e gigantesco dinamismo do seu próprio mercado interno. E mal nos damos conta, ainda, desta nova coexistência equilibrada entre colossos autônomos, em novo repto para o aprofundamento democrático de nosso tempo.
Jornal do Commercio (RJ), 26/11/2010