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Gilberto Freyre, o intérprete do Brasil

 

Há pessoas que nascem para a realização de uma obra inovadora e há escritores que, desde o começo, parecem destinados a escrever certos livros. Gilberto Freyre inclui-se entre os predestinados a realizar uma missão histórica. Nasceu em Pernambuco e entrou para um colégio americano, onde o idioma inglês se tornou a sua segunda língua. Seu pai fez questão de que ele fosse para os Estados Unidos, onde adquiriu os pressupostos metodológicos essenciais ao estudo da sociedade escravocrata brasileira e do patriarcado rural.


Nos Estados Unidos, com 18 anos, tornou-se graduado pela Columbia University, onde teve contato com grandes sociólogos e com mestres da poesia, sobretudo Ame Lowell. Na Universidade de Columbia, escreveu uma tese sobre a sociedade brasileira e a escravidão, tão perfeita que foi aconselhado a transformá-la em livro.


Nasceu aí Casa grande & senzala.


De volta ao Brasil, integrou-se na Semana de Arte Moderna, mas logo depois apoiou a Semana Regionalista e Tradicionalista. E dedicou-se à política, como auxiliar direto do governador Estácio Coimbra, deposto pela Revolução de 30, que o levou ao exílio.


Novamente nos Estados Unidos, foi professor visitante da Universidade de Stanford, convivendo com o sociólogo e antropólogo Franz Boas, que teria grande influência sobre ele.


Casa grande & senzala já havia surgido como expressão de uma sociedade semi-feudal bem diferente daquilo que ocorria na América Espanhola, onde conviviam culturas diversas. A formação brasileira, segundo Gilberto, tem sido um processo de equilíbrio e de antagonismos de economia e de cultura. A economia agrária e a pastoril. A cultura européia e a africana. A católica e a herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os antagonismos, sendo o mais profundo deles, o senhor e o escravo.


Quando a casa grande e a senzala foram atingidas pelo progresso, operou-se a passagem de uma sociedade rural para uma sociedade urbana, perdendo-se em parte o sentido do meio ambiente. Surgiram as cidades que não eram mais a expressão da realidade tropical, mas algo que vinha das influências da Europa, como se fosse uma volta à europeização. Gilberto surge então como um defensor da ecologia e os ambientalistas encontram nele o mestre antecipador de suas diretrizes doutrinárias, apontando a natureza como fator determinante por excelência da conduta humana.


Em Sobrados e mucambos - livro de uma riqueza extraordinária - Gilberto analisa quase um século da vida brasileira, até os últimos anos do Império, dando um banho de sociabilidade à nossa história, que até então havia sido predominantemente a história dos acontecimentos bélicos ou dos fatos políticos mais relevantes. Ele preferiu penetrar na vida do homem comum, sendo aí um psicólogo à maneira proustiana.


A visão desse livro é penetrante, demonstrando as mutações sociais decorrentes da miscigenação, que, aos poucos, marca a ascensão do mulato e do bacharel, qualidades não raro reunidas numa só pessoa. O bacharelato é um instrumento através do qual se conquistam postos sociais. O mulato sabe que, diplomado em direito ou em medicina, abre caminho na sociedade, deixando de ser visto como homem de cor.


Em Ordem e progresso, seu terceiro livro, publicado em 1957, Gilberto descreve a nação brasileira, numa interpretação profunda e colorida da nossa vida religiosa, moral, política, econômica e artística, a cavaleiro dos séculos 19 e 20, quando, em verdade, adquirimos maior consciência da nossa identidade cultural.


Gilberto foi um democrata, mas não um democrata que cuidasse apenas dos problemas políticos. Ele foi um dos primeiros a falar em ''democracia social'', que não deve ser confundida com a ''social-democracia'', correspondente a uma teoria política alemã, quando Bernstein fez a revisão do marxismo, ao pregar a passagem do capitalismo para o socialismo, mediante o emprego da democracia, isto é, pelo voto universal.


Reservemos o nome de ''democracia social'' àquela que não se contenta com o valor da liberdade individual, como faz o liberalismo. É esta a democracia almejada por Gilberto Freyre, que acrescentava ainda o adjetivo ''racial'', tanto era a sua preocupação com o problema da miscigenação.


Pois ele jamais esqueceu o elemento racial no Brasil. Enquanto não houvesse uma democracia étnica, não haveria, a seu ver, democracia no Brasil.


Gilberto Freyre viu-se vítima de toda espécie de acusações ideológicas. Mas ele era, pura e simplesmente, um homem de ciência, sabendo que a verdade histórica não é absoluta, mas sim uma verdade que, como dizia Vico, ''corre com o tempo''.


Durante 15 anos, participei com ele do Conselho Federal de Cultura, ao lago de Afonso Arinos de Melo Franco, Gustavo Corção, Vianna Moog, Pedro Calmon, Raymundo Faoro e outros. Foi um dos momentos mais ricos e felizes da minha existência, ao compartilhar, com homens desse valor, de suas esperanças e de seus esforços no sentido da projeção moral, social e histórica de nosso país.


Cabe-se, então, perguntar por que Gilberto não pertenceu à Academia Brasileira de Letras? Simplesmente porque ele não concordava em se inscrever como requisito para pleitear sua eleição, embora convidado pela totalidade dos acadêmicos. Achava que só devia ir para a Academia se fosse aclamado. E a Academia não podia modificar seus estatutos e seu regimento só para receber Gilberto Freyre.


Não o critiquemos por isto. Ele tinha o direito de ter vaidade, e não a ocultava, assim como nós temos o direito de ter vaidade de Gilberto Freyre.


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) 11/08/2004

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ), 11/08/2004