Quem tenha lido Aventura e rotina recordará o deslumbramento com que Gilberto Freyre viveu os poucos dias que passou na Ilha de Moçambique. Ali sentiu-se atordoado pela profusão de cores, ruídos, trajes e culturas em combinação e conflito. Entonteceram-no sobretudo as mulheres, nas quais, diz ele, a mestiçagem alcançava ''vitórias esquisitas de beleza e graça nas formas, nas cores, no sorriso, na voz e no ritmo do andar''.
Em janeiro de 1952, Gilberto Freyre desceu ali, em Moçambique, na margem ocidental do Índico. Ele estava preparado para entender a ilha, porque desde Casa-grande & senzala, mas sobretudo em Sobrados e mocambos, ele havia ressaltado - e creio que foi o primeiro a fazê-lo - a herança asiática do Brasil. Fora o primeiro a destacar a absorção, pelo Brasil colonial, de objetos, plantas e costumes do cotidiano do Oceano Índico. Não há varandas brasileiras sem móveis de junco da Índia. Nem festa sem os fogos de artifício da China, de onde nos vieram também os papagaios de papel, as arraias e as pipas. Tudo isso Gilberto Freyre identificou como asiáticos. Pois já tinha descoberto que o Oceano Índico banhava as praias brasileiras.
E acrescenta: até o bater de palmas à porta das casas vem da Índia, pois em Portugal se usava um sininho ou aldraba. O gosto pelos espaços cobertos na frente das casas e pelas varandas foi trazido também pelos africanos, pois em boa parte da África Ocidental ninguém vivia dentro de casa, mas sim nos pátios e nos alpendres.
Já em Casa-grande & senzala, Gilberto nos havia mostrado, pioneiramente, a importância de Goa e de Macau na vida brasileira. Mesmo quando a metrópole proibia aos chamados navios da Índia que aportassem no Brasil, eles o faziam com freqüência, alegando necessidades de navegação. E o faziam em favor de um contrabando que Gilberto descreve com acuidade em Sobrados e mocambos, em cujo capítulo 9 se demora numa agudíssima análise sobre o Oriente no Brasil. E diz-nos com clareza que o Brasil era um país mais africano e asiático do que europeu, mais oriental do que ocidental.
De suas leituras, ele concluíra ser grande a semelhança entre Goa e o Brasil anterior a Dom João VI. Apesar disso, não deixou de se maravilhar com o Brasil antigo que encontrou em Goa, ao ali chegar em fins de 1951, parecendo-lhe que baixava em São Luís do Maranhão.
O seu grande arrebatamento estaria, contudo, reservado à Ilha de Moçambique, que resumia todo o Índico e à qual as águas do Atlântico também haviam chegado.
Extasiou-se com a beleza das mulheres, uma beleza que atribuiu à mestiçagem luso-tropical. Na realidade, era uma mestiçagem muito mais antiga. O sangue português era novo, entrara ali havia 400 anos. Era de ontem. Na ilha, continuava a processar-se uma mestiçagem com mais de dois milênios, na qual estavam envolvidos bantos, somalis, etíopes, árabes, persas, cingaleses, javaneses e chineses. Aquele era um antiqüíssimo porto mercantil, no qual todas as marinhas do Índico tinham feito feitorias ou casas de negócios.
Se na ilha havia uma maioria culturalmente mestiça - como Gilberto percebeu ao primeiro olhar - não se tinha apagado a pluralidade cultural: nela conviviam muçulmanos xiitas e muçulmanos sunitas, cristãos católicos e protestantes, cada qual com seu modo de morar e de trajar.
Gilberto Freyre, que sempre reclamava maior atenção para as somas e trocas culturais, deixou-se maravilhar em Moçambique. São parágrafos de entusiasmo os que, em Aventura e rotina, escreveu sobre a ilha. Relativamente poucos - não somam dez páginas -, porém agudíssimos na observação e na análise.
Naquela pequena ilha, os portugueses encontraram-se na fronteira de culturas tão ricas quanto a deles, ou ainda mais ricas. Quem não creia nisto que vá ao Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa, e olhe com atenção para todos os lados. Os portugueses levaram para a sua terra tudo aquilo que deixaram de passagem no Brasil: os gostos adquiridos no Mar Vermelho, no Golfo Pérsico, na Índia, em Malaca, na China e no Japão.
A Ilha de Moçambique é o testemunho de uma longuíssima aventura histórica, na qual nos incluímos. Daí o arrebatamento de Gilberto Freyre, que foi ter a essa ilha após ter descoberto, com olhos de ver, a sua Índia. E foi de lá que ele nos ditou a lição: é urgente que se comece a ver o Brasil de fora para dentro e ligá-lo ao resto do mundo. Pois boa parte de nossa história, a história dos brasileiros, desenrolou-se nos oceanos e no além-mar.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro ) 09/11/2005