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Gibraltar e a crise do "Mensalão"

 

O que mais tenho ouvido, e constitui um tema de comemoração e de ufanismo, é o fato de que a crise política brasileira, profunda e esparramada, não conseguiu abalar as estruturas do regime, não existem ameaças institucionais e, como conseqüência, a economia mantêm-se firme como as colunas naturais do rochedo de Gibraltar, que desapareceram como de Hércules, colosso e maravilha, limites do mundo.


Todos tiram conclusões muito paradigmáticas, como "a nossa democracia amadureceu e consolidou-se". Fico um pouco receoso. As pesquisas não são nesse sentido. O povo parece ver cada vez menos na democracia a solução para seus problemas. E é muito simples falar só em "democracia". As palavras, como tudo, nascem, vivem, envelhecem, trocam de temperamento e de feição. Democracia é um termo que mudou muito e não é o que sempre achávamos significar. Palavra grega, governo do povo. A chamada democracia clássica não era do povo nem clássica, mas dos homens, e só destes, sem as mulheres, discriminadas. Passou por muitas adjetivações e significações, cada uma a seu modo e circunstância, para justificar este ou aquele regime ou aventura ideológica.


Tocqueville, no seu famoso tratado sobre a democracia americana, a viu como a busca da igualdade social. Marx não se conformava muito com a regra de a cada cidadão um voto. Da fórmula consagrada por Stuart Mill -e que passou a ser francesa-, do governo da maioria com o "esprit de minorité", até à conquista do voto das mulheres, muita água rolou por debaixo da ponte.


Hoje, o conceito de democracia foi consolidado como o de um governo de liberdades, que surgiu depois da Segunda Guerra Mundial. À minha geração corresponde este modo de ver e crer. Na América Latina, essa visão começava pela construção das instituições, do direito de votar, democracia formal.


Nessa acepção, somos exemplares. Já fizemos o impeachment de um presidente, centenas de milhares de greves ocorrem sem repressão, temos uma imprensa livre e forte, amplo clima de direitos civis e liberdade.


Serão esses pilares que fazem a crise atual não afetar as instituições? Minha opinião é de que há um "mas" a ser ressaltado. Entre 85 e 90, fez-se um programa exitoso de profissionalização das Forças Armadas, e estas voltaram aos quartéis. Nossas crises derrubavam tudo porque os militares eram os árbitros da vida política. Sem o militarismo, isto é, a agregação política ao poder militar, a democracia digere as suas crises. Todos estamos submetidos ao poder civil, e os militares, ao estrito dever de garantir os poderes constitucionais. As chamadas "vivandeiras de quartéis" não têm mais portas onde bater: estão fechadas. Por isso devemos constatar que a democracia funciona com Forças Armadas fortes e respeitadas, como garantia da estabilidade. Daí a necessidade de tratá-las com prestígio e dar-lhes as condições de vida necessárias ao exercício de sua alta missão. Acabar com esse ranço de vê-las de forma preconceituosa.


As estruturas políticas não têm as vulnerabilidades do passado e, assim, sem perigo, a economia funciona sem abalos.


O Brasil deu um salto gigantesco na qualidade de suas instituições, o maior deles a absoluta dedicação das Forças Armadas ao desempenho de suas atribuições constitucionais.


Assim elas se comportaram em 92 e agora em 2005.


Por isso o "mensalão" não derrubou as colunas de Hércules.




Folha de São Paulo (São Paulo) 18/11/2005

Folha de São Paulo (São Paulo), 18/11/2005