Receio que minha vinda aqui à feira do livro de Frankfurt não tenha causado grande impressão lá em Itaparica. Antes de vir para cá, dei uns telefonemas para um seleto grupo de conterrâneos e acho que o único resultado que obtive foi a confirmação da opinião do meu saudoso amigo Luiz Cuiuba, segundo a qual eu sempre tive uns problemas na ideia, como, aliás, também suspeitava dona Madalena, nossa professora primária. Não sei se já contei aqui que Cuiuba nem sequer me considerava escritor e fazia umas caretinhas de mofa, quando eu insistia que era. Ele tinha lá suas razões, porque uma vez, numa tertúlia realizada no Mercado, durante uma discussão para saber quem era capaz de citar mais nomes de peixe (marcas de peixe, como lá se diz), ele se envolveu numa discussão acalorada com Ioiô Saldanha, seu oponente na contenda. Depois de várias alegações, por ambos os debatedores, de que certos peixes já haviam sido citados antes, Cuiuba propôs uma solução.
— Este daqui — disse ele, me batendo a mão nas costas — é escritor. Então é só a gente pegar um papel e um lápis aqui na banca de Sete Ratos e ele aí vai escrevendo as marcas de peixe. Se repetir, é só conferir na lista.
— Você está maluco, Cuiuba, eu vou passar a manhã inteira aqui, escrevendo marcas de peixe para você e Ioiô?
— Ô, você não vive espalhando aí que é escritor? Eu mesmo lhe conheço desde menino, mas nunca vi você escrever nada, só escuto é muita conversa. Bom de gogó você sempre foi, porque saiu a seu avô, embora não chegue nem aos pés dele em matéria de discurso. Agora, escrever eu nunca vi foi nada e, na hora em que a gente chama para escrever uma besteira de uma lista de peixe, você tira o corpo fora. Bonito escritor esse, que nem uma lista de peixe acerta a escrever.
— Eu escrevo livro, artigo de jornal...
— Pra suas negas! Vá contar lorota no Rio de Janeiro, onde ninguém lhe conhece como o povo daqui, que já viu foi você roubando galinha do quintal de sua avó, junto com Bertinho Borba e Bertinho Penico! Um homem que acerta a escrever um livro não vai acertar a escrever uma lista de marca de peixe? Me venha com outra, meu compadre, porque com essa você não pega nem Nezinho Leso, que, aliás, deve ser seu primo, porque não sei qual dos dois é mais leso. Chega de enrolação, vai escrever a lista ou não vai?
— Não, não vou, claro que não vou.
— Então está provado, reprovado e treprovado, aqui na frente de todos, que essa conversa de escritor é para impressionar otário, mas a mim você não vai mais me tapear e, aliás, nunca tapeou. Professora Madalena sempre disse que você tinha um problema na ideia. Professora Madalena...
Creio que a passagem do tempo não melhorou muito minha situação. Quando consegui falar com Xepa, pude perceber bem isso. Contei a ele que estava de partida para a feira de Frankfurt e sua voz soou preocupada. Já tinha escutado essa notícia e, para ser sincero, ficara um pouco aflito. Não que desse inteira razão à professora Madalena, quanto a meu conhecido problema na ideia, mas aquele negócio de eu viajar para a Alemanha para fazer feira...
— Eu vou para a feira do livro, Xepa.
— Ah, diga isso, que alívio! Aqui a conversa era que você agora ia fazer feira na Alemanha. A pessoa normal daqui faz feira em Nazaré das Farinhas, na Alemanha nunca ouvi falar, só maluco mesmo. Mas aí está certo, agora eu compreendi. Ninguém compra seus livros aqui no Brasil e aí você resolveu montar sua barraquinha de vender livro na feira da Alemanha, está certo, cada qual procura suas melhoras. Aqui não está dando, o negócio é procurar um lugar onde o povo tenha mais dinheiro para gastar com bobagem, está certo, muito inteligente de sua parte, eu aprovo. Tomara que venda bastante. Manolo me disse que você ainda está com uma conta pendurada no Bar de Espanha e Beto Atlântico disse que estava marcando viagem para o Rio para lhe oferecer um adjutório e ver se não era caso de lhe internar, graças a Deus que é sua barraquinha de livros. Já tirou licença na prefeitura da Alemanha, está tudo regularizado? Lá tem de estar tudo nas pontas, tudo certinho, senão eles fuzilam, alemão não é graça, confira a papelada toda!
Bem, agora estou aqui e não trouxe a barraquinha, nem vou ter condição de fazer isso assim em cima da hora, até porque Xepa sabe das coisas e não quero ser fuzilado por falta do alvará. Mas seria uma grande ideia e espero que, na próxima feira de Frankfurt, eu possa compor uma cooperativa de escritores igualmente premidos pelo baixo faturamento do setor e estabelecer nossa barraquinha. Mas creio que livros não sejam a melhor mercadoria, porque, mesmo aqui na Alemanha, nestes tempos de crise econômica na Europa, não deve haver tanta gente assim, disposta a gastar dinheiro com bobagens. Fiz uma pesquisa rápida e não encontrei farinha de mandioca, rapadura, coentro fresco, jerimum, jabá da boa, cachaça, fumo de corda, azeite de dendê, camarão seco e diversos outros gêneros de primeira necessidade que — vejam como são as coisas — os alemães, um povo tão adiantado, não conhecem. Aliás, a verdade é que a Alemanha não é mais a mesma. Aqui no hotel onde estou, faltou água na segunda e na terça passadas. Um pouco embaraçada, a moça da recepção me explicou que a situação era passageira e que, caso os hóspedes necessitassem usar o banheiro, havia outro hotel por perto, onde nos dariam acesso a um banheiro. Achei meio chato talvez fazer fila na rua, estremunhado, de roupão e com a escova de dente na mão e preferi esperar que a água voltasse. Duvido que isso acontecesse em Nazaré.
O Globo, 13/10/2013