O Rio de Janeiro de ontem aparece, em páginas saudosas, no livro de memórias de Yvonne Simoens, que foi a colunista do jornal "O Dia", onde minha mulher Zora Seljan também trabalhava assinando uma crônica chamada "Sempre aos domingos". Cada uma na sua página, estudava o momento, sendo que Zora tinha um assunto quase permanente: a África Ocidental, onde morávamos.
As crônicas de Yvonne Simoens tratavam mais do Rio de Janeiro, cidade em que vivera o tempo todo e cujo espírito entendia como ninguém. Foi um Rio de Janeiro posterior ao de Machado e Bilac, ao de Lima Barreto e João do Rio, quando a cidade assumia aspectos novos e perdia morros, ganhava bairros e avenidas modernas, como se dizia no começo do século XX: "O Rio civiliza-se".
Acompanhar um começo de vida nesse Rio leva-nos a compreender de que maneira somos ou não cariocas e quão diferente se mostra hoje quase tudo na cidade. O centro do mundo era Botafogo. O bonde, meio de transporte para a população
E havia diversões. Sentada no banco dos cínicos (era o banco imóvel, nas duas extremidades, que não viraram para os dois lados, como os outros), o pai brincava: "Yvonne, você quer ver a metade dessa gente sentada bocejar?" Então, ele começava a bocejar educadamente (ela acrescenta: "É claro") e, em breve, uma boa parte dos passageiros bocejava.
Terra era o que mais havia. Um parente doara ao governo a longa extensão que ia da Rua General Polidoro até a Rua São Clemente, exigindo só que se dessem às ruas os nomes de Sorocaba e Mariana.
As roupas de homens e mulheres tinham suas prescrições. Os homens de ternos sempre escuros: cinzas, pretos, marrons. A autora detalha: "Meu pai e meu tio usaram muito tempo as clássicas polainas, as camisas engomadas de plastron pregueadinho, a gola alta e em geral uma flor no peito, colhida no jardim, na hora da saída".
A primeira comunhão era uma cerimônia importante na vida de uma criança. As meninas principalmente precisavam de vestidinhos especiais e havia festa na família. Aos quatro anos, as meninas costumavam dançar, eram levadas a festas quando ficavam um pouco maiores. Havia cuidados especiais para as crianças que geralmente faziam ginástica sueca e, depois do exercício, diz a autora: "Titio nos dava para tomar uma colher de sopa de licor de cacau ou de vinho xerez com uma gema de ovo crua dentro, que se engolia".
O hábito das operetas e das óperas surgiu com as vitrolas que apareceram então. Aos seis anos, Yvonne foi ao Teatro Lírico, situado no local em que está hoje a Cinelândia, lá assistiu à ópera "Aída" e guardou para sempre a imagem da Celeste Aída na memória. Inesquecível seria também a imagem da grande bailarina Ana Pavlova dançando "A morte do cisne". Também artistas brasileiros, como Gilda de Abreu e Vicente Celestino entravam na lista de admiração de Yvonne que, por não lhe ter sido permitido seguir a carreira de bailarina, começou a escrever e não parou mais.
Eis a descrição de Yvonne Simoens da passagem do dirigível "Hindemburg" pelos céus do Rio de Janeiro por volta de 1930: "... de repente tive a atenção despertada por um imenso e colossal balão que vinha pelo ar não se sabia de onde". Minutos depois, o autor destas linhas de agora, seminarista em Campos, vestido de batina, viu o mesmo balão majestoso indo na direção do Norte.
Livro de memórias é assim. Traz outras, lembra aspectos parecidos de uma realidade e como que justifica todas as coincidências que se amontoam pelo mundo afora.
O Carnaval, com suas fantasias e sua música, também aparece no livro, e havia as fogueiras de São João e São Pedro, as festas de Santo Antonio e São Jorge e a mãe, numa pequena máquina Singer, inventava fantasias de índia, de cigana, de camponesa alsaciana, de florista, de fidalgo francês, que a filha usava.
"Memórias da infância", de Yvonne Simoens, reafirma o princípio de que um povo só existe porque tem memória. Não só porque tem, mas também porque a põe no papel. O volume sai com apresentação de Monica de Sorocaba Botkay e capa de Carolina Fessler Vaz.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 11/07/2006