Roubar máquinas que trabalhavam para minorar os efeitos de uma tragédia é falta de compaixão. Qualquer bando de cachorros vadios tem mais sentido de coletividade
Há alguns dias, uma imensa pedra se desprendeu e rolou morro abaixo sobre uma comunidade em Vitória. Por sorte, não acertou ninguém, e não se perderam vidas, mas destruiu tudo o que estava em seu caminho. Além disso, abalou o equilíbrio que mantinha no lugar um conjunto de blocos de granito. Outras pedras de várias toneladas podem rolar a qualquer momento. A Defesa Civil — que já havia alertado os moradores sobre os riscos do lugar onde estavam se estabelecendo — evacuou a área e tomou providencias para que as famílias deslocadas se abrigassem em espaços provisórios enquanto durem as obras de contenção.
A partir daí, repete-se o quadro que vemos por todo o país diante de catástrofes semelhantes — sejam elas deslizamentos, enchentes ou de qualquer outra natureza. Alguns moradores têm de ser retirados quase à força e, na primeira oportunidade, voltam aos locais de onde foram obrigados a sair. Mesmo correndo grandes riscos, muitas vezes não conseguem seu objetivo: defender o que é seu, tudo o que têm na vida.
Não podem contar com um policiamento eficiente para proteger os parcos bens, adquiridos com tanta dificuldade. Os ladrões são mais rápidos. Em poucas horas, saqueadores já arrombaram e depenaram as casas, levando roupas, móveis, eletrodomésticos. O tão celebrado homem cordial brasileiro mais uma vez revela sua compaixão zero. E nisso não é diferente dos saqueadores que fizeram algo parecido em Nova Orleans após a passagem do furacão Katrina. Analistas falam em refreamento da solidariedade e da empatia. Ou acirramento da competição e da hostilidade. Em terras tupiniquins, somada à mais absoluta certeza de impunidade. Até mesmo com as desculpas cínicas desse personagem bem nosso, o ladrão coitadinho, que também é carente de tudo e precisa pensar no amanhã de sua família, ou acha que nesse caso não haveria lei proibindo, já que eram bens abandonados, largados, deixados para trás, sem dono.
Em outra escala, algo disso se repete nos desvios de merenda escolar ou de doações para vítimas de enchentes, e no que agora ocorreu após o rompimento da barragem em Mariana. Chega a ser inacreditável. Antes de mais nada, roubar máquinas que trabalhavam para começar a minorar os efeitos de uma tragédia dessa dimensão é falta de compaixão e de responsabilidade cívica em grau extremo, indigna da espécie humana. Qualquer bando de cachorros vadios tem mais sentido de coletividade.
Então uma quadrilha consegue roubar do canteiro de obras as retroescavadeiras e demais máquinas que lá estavam, sendo utilizadas para começar a recuperar o terreno destruído e recoberto da lama de dejetos? Tantas assim? Tão grandes? Tão lentas? Sem deixar pistas? Ninguém se deu conta? Foram abduzidas pelo ET de Varginha, que anda atacando novamente? Não dá para imaginá-las sendo removidas de balão ou helicóptero, sem serem detectadas pela Polícia Rodoviária. Ou, como nas histórias em quadrinhos, de super-heróis e supervilões, sendo borrifadas de tinta invisível ou sofrendo os efeitos de um raio desintegrador que só iria reintegrá-las muito longe, talvez no Planeta Mongo. A não ser que estejam em algum esconderijo subterrâneo, junto com as vigas de concreto roubadas da Avenida Perimetral, nas barbas de todo mundo, e jamais localizadas.
Como ninguém percebeu algo dessa dimensão? Dá para acreditar nessa história mal contada? A ousadia de uma ação dessas só se explica se houver a certeza absoluta da impunidade. Da mesma forma que esses desvios de milhões do dinheiro publico, de que o país não para de tomar conhecimento. Tudo amparado na convicção de que a lei não é para valer, sempre pode ser burlada — experiência que se repete na vida do cidadão. Ou se repetia, o que só confirma a importância da Lava-Jato e do julgamento do mensalão.
Mas as leis físicas se impõem — nas barragens que se rompem, nas encostas que deslizam com as chuvas, nos rios assoreados que inundam cidades impermeabilizadas onde suas águas não encontram a porosidade da terra. Ou na poluição do ar pelos combustíveis fósseis ou pelo pó de minério ao longo das ferrovias de mineradoras. Ou no esgoto que emporcalha as praias brasileiras, de Santa Catarina ao Maranhão, passando pela triste Baía de Guanabara. Também as leis da economia, em sua inexorável matemática, estão mostrando no que dá gastar mais do que se ganha ou fingir que se cresce sem produzir mais.
Só que essas leis físicas ou matemáticas não cedem a argumentos, slogans ou chicanas, nem estão sujeitas a serem compradas por quem dá mais — como os depoimentos e investigações da Lava-Jato estão revelando que acontece com emendas enxertadas em medidas provisórias, às escondidas, mediante propina a políticos, uma das mais repugnantes práticas de corrupção jamais inventadas. A confirmar, para nossa desgraça, que estamos sob o domínio da Lei da Selva. Resta à população aguentar a consequência e lembrar disso na hora do voto. Se não estiver anestesiada.