Já me explicaram mil vezes o que é e como se forma o poder. Eu próprio fucei por ai, lendo entendidos e curiosos que trataram do assunto. Li alemães, que são bons na matéria. Li tratadistas que pleonasticamente trataram do poder e de sua fonte.
Tanta e tamanha sapiência nunca me convenceu. A primeira noção que tive do poder foi um canivete que o pai jogou fora. Estava enferrujado e só tinha uma lâmina, com a qual o pai descascava laranjas o ano todo e as castanhas nas ceias de Natal.
Não usava facas para isso. Ao contrário daqueles que crucificaram Cristo, ele devia saber o que fazia. Apanhei o canivete no lixo, limpei-o, amolei sua única lâmina numa pedra cinzenta e porosa que tinha o óbvio nome de "pedra de amolar".
Armado cavalheiro, sagrado com aquilo que os laudos do Instituto Médico Legal chamam de "instrumento pérfuro-cortante", assumi o poder de todo o lado esquerdo da rua em que morava.
Só não assumi o poder da rua inteira porque, no lado direito, havia um menino que tinha um canivete com duas lâminas. Uma delas era maior que a outra.
Aberto, o canivete parecia um siri com duas garras metálicas. Chamava-se Agenor. Nunca tive um amigo com esse nome -e acho que o motivo foi esse canivete mais poderoso do que o meu. Daí estabeleci toda a hierarquia do poder, que perdura até hoje.
Anos depois, em Zurique, comprei um daqueles canivetes suíços que tem 48 lâminas e outras tantas serventias. Dizem que é a arma principal do exército daquele país. Ninguém briga com a Suíça com medo de arma tão mortífera.
Nunca esqueci aquele canivete de duas lâminas que me roubou o poder de uma rua. Uma rua que não mais existe, um poder que nunca tive e, pensando bem, que nunca quis ter.
Folha de S. Paulo, 6/6/2010