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Flora era a pessoa que eu mais amava

 

Todo dia tem um pouco de tragédia. Talvez tenha que ser assim mesmo, o que se há de fazer. Mas, às vezes, fica um pouco demais. Os brios feridos podem ser compensados com enérgico apoio ao general Santos Cruz e sua declaração sobre o caso Pazuello: “Vergonha”. E o edifício que ruiu em Rio das Pedras, matando Nathan e a filha Maitê, ferindo tanta gente, que nem Maria Chiara, a mãe quase morta, como é que fica? Quem vai viver a vida deles?

Choro por amigos que se mandaram nesse bonde de merda. Choro por meu mestre no movimento estudantil, o grande Milton Coelho da Graça, jornalista capaz de levantar a notícia impossível e preservar sua importância para o futuro do país. Choro por Maurice Capovilla, cineasta, artista e pensador que interrompeu sua carreira de sucesso para preparar jovens que queriam ser como ele. Choro por meu querido Nelson Sargento, nem preciso explicar porquê.

Eles morreram de Covid, pelo descaso do poder, pela crueldade estratégica de quem acha que a vida humana não tem importância diante do PIB. E nem o PIB se consegue proteger, a não ser como mentira publicitária. Nós todos sobrevivemos agarrados ao soft power brasileiro por excelência — a esperança. É como se o Sol que nos iluminava tivesse sido sequestrado para sempre.

Flora, minha filha, morreu no dia 2 de junho de 2019, aos 32 anos de idade, de um tumor no cérebro. Há dois anos. Ela teve os primeiros sintomas no final de 2015, foi operada e melhorou muito. Estava fazendo televisão e cinema com entusiasmo e sucesso, quando o tumor voltou em 2018, depois de Cannes, para onde ela foi conosco apresentar o “Grande Circo Místico”, em que é atriz e bailarina. Linda. Lindíssima.

Flora era meu ser humano predileto, a pessoa que eu mais amava neste planeta e com quem conversava durante dias seguidos sobre arte, política, o cinema e a vida. Ela estudou cinema na PUC, mas queria mesmo era ser atriz e foi uma ótima atriz, enquanto pôde. Depois do “Grande Circo Místico”, meu projeto era fazer um filme com ela e Betty Faria, chamado “A dama”, sobre duas gerações políticas tão diferentes. Eu estava preparando essa produção quando ela ficou doente. Não fui capaz de fazer o filme com outra atriz, joguei fora o roteiro.

Como também não fui capaz de fazer nenhum outro filme, depois disso — eu e Renata ficamos, desde então, cuidando de Flora, dividindo com ela nossos corações em frangalhos.

Flora viveu em permanente compaixão pelo outro, o mais nobre sentimento humano — compartilhar com o outro sua paixão de dor ou de alegria. Sonhar, inutilmente ou não, o mesmo sonho. Sempre que me via sorumbático, tentava adivinhar do que se tratava para me dizer que eu era um bobo, que nada daquilo valia a pena. O importante era anunciar ao mundo que queríamos ser felizes, nem que para isso tivéssemos que mudar de planeta.

Tomei posse de minha cadeira na ABL no dia 12 de abril de 2019 e, como ela estava muito fraca e não tinha como sair de casa, vesti meu fardão e li para Flora, sozinhos em meu escritório, o discurso que fiz naquela noite. Ela o corrigiu, me deu mais umas ideias e pronto. Eu chorei, ela não. No final de maio, Flora entrou em coma e morreu no primeiro domingo do mês seguinte, nos braços de Renata.

Desde então, envelheci. Não que eu quisesse morrer também, nunca pensei nisso. Mas não consegui fazer mais nada, a não ser escrever, uma vez por semana, para esta coluna no GLOBO. A pandemia me fez ficar em casa, celebrando a memória de Flora. Uma crise oportuna, a natureza queria ser solidária comigo, sentir como eu a ausência dela. Pesquisei ideias para outro filme, mas a pandemia se agravou, me avisando que era cedo para fazer a cabeça e o coração se alimentarem de outra emoção que não aquela. O riso e a lágrima soariam falsos, sem sentido. Seja o que o vírus quiser, essa é uma história banal quando não é com a gente que acontece. Vamos em frente.

Como escreveu Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo genial, mais pessimista do que um cineasta ignorante, “só começamos a enxergar alguma coisa quando não há mais nada para ver”.
 

 

O Globo, 06/06/2021