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Flor do asfalto

 

Uma opinião pessoal, sujeita a chuvas, trovoadas e enchentes como as de São Paulo. Ou piores, porque estanques na memória estagnada do menino que fui sem nunca ter sido realmente um menino. Acho que o mundo era outro. Ao cair da tarde, acendia-se a primeira lâmpada da casa. Minha madrinha era a primeira a saudar a luz que iluminaria o nosso jantar: “Boa noite!” E todos se cumprimentavam, como se estivessem chegando de uma jornada que ficara para trás.


Era hora, também, de os vizinhos se saudarem. E os boas-noites se cruzavam de varanda a varanda, passando pelas cercas de buganvílias – que toda casa tinha uma. E nosso vizinho aparecia já de pijama, arrastando os chinelos.


Ia de casa em casa levando o seu boa-noite. Chamava-se Azevedo, Azevedo não sei de quê. Meu pai dizia que Azevedo era maluco, mas boa alma – antigamente havia essa expressão: boa alma. Pois, com sua boa alma, seu pijama e chinelos, Azevedo dava boa-noite a todos e, por mais que pareça improvável, isso fazia nossa noite realmente boa.


Depois, outras luzes eram acesas, o cheiro das buganvílias ficava suspenso no ar até que chegava o cheiro do jantar que estava indo para a mesa. A cabeça da madrinha, muito branca e limpinha, começava a curvar sobre o peito, ela jamais dormiria sem antes ver acesa a primeira luz da casa, sem antes celebrar a cerimônia da paz com a senha de seu boa-noite.


Na casa ao lado, além das buganvílias, Azevedo preparava-se para dormir com seu pijama, seus chinelos e sua boa alma. Um cair de noite com cheiros bons de uma vida que corria sem pressa. A novidade era o rádio que trazia um pouco da perfídia do mundo para a nossa paz: “Deixou-me a flor do asfalto abandonado, nesta ansiedade louca do desejo...”.


Folha de S. Paulo, 7/2/2010