E, quando melhores estão as coisas, surge a vontade antiga: acreditar outra vez. Já nem importa simplesmente acreditar em quê, mas acreditar em si mesmo, no amor, no trabalho, na virtude, no inferno ou no nada.
A culpa já não é mais da vida -é nossa. E nisso não há consolo nem glória. Deixamos que as coisas se gastassem e, de tanto evitá-las, de tanto nos guardar para uma oportunidade que nunca veio -e agora sabemos que não adianta vir-, construímos o vácuo que nos conserva monotonamente iguais e frios, como um réptil de duras escamas, a esconder a fragilidade de uma carne virgem e condenada a ser carne.
Também não é o caso de desesperar. O desespero é solução da tribo dos traídos ou dos ofendidos -e, à distância em que nos colocamos dos seres e das coisas, ficamos protegidos das traições e das ofensas. "Turris eburnea, ora pro nobis" -nem adianta repetir as ladainhas da infância nem as imprecações e blasfêmias da mocidade.
Isto posto, seguir em frente (se ainda há frente), com a certeza de que não vai acontecer nada, nem mesmo a morte.
De tanto esperá-la, de tanto temê-la, assimila-se a morte como um acontecimento presente, que está acontecendo a cada minuto, neste momento, espremendo o corpo contra o tempo que ainda falta curtir -igualzinho a um fim de férias, de festa ou de recreio que sabemos que vai acabar daqui a pouco e não adianta iniciarmos nova conversa ou nova brincadeira: não haverá tempo.
Sobra então o compromisso com a hora da hora em torno da hora -e qualquer brincadeira ou conversa será sem sentido. E enquanto tudo não acaba, há tempo para pensar em tudo, tempo para pensar no tempo, vontade de ter vontade.
Mesmo assim, no corredor final, a vida vale a pena mesmo que a alma seja pequena?
Folha de São Paulo, 15/5/2011