Um momento de indecisão ao subir a escada. Irá esbarrar com o quadro. É sua melhor obra em quase 20 anos de pesquisa e trabalho. A única que realmente valeu alguma coisa, que fugiu aos padrões convencionais, às repetições. E agora está abandonada e imersa no bar onde só se pensa em trepadas, negócios, piadas. Talvez tivessem substituído o quadro, muitos pintores gostariam de ter obra pendurada ali. Embora de costas, ele sente que o quadro é o seu.
O garçom traz nova dose. Ele tem repugnância em continuar bebendo, o estômago recebeu mal a dose anterior e a cabeça está vazia, começa a falar, com mais fúria do que som, as palavras saem de uma caixa oca, não fazem sentido, mas significam tudo.
Ele recua e desce. Agora, está em frente ao quadro. Por um instante se surpreende de ter feito um trabalho aproveitável. Havia muito não pensava nele, mas, apesar da bebedeira e da escuridão, percebe que ali há movimento, o ritmo é excelente. Pode dizer para si mesmo: "Eu me perdi por nada!"
Levanta o pé, o mais alto que pode. Quer atingir o meio do quadro, mas não consegue. O pontapé pega na moldura, apenas um pequeno canto fica rasgado. O quadro entorta na parede.
E antes que alguém o contenha, agride e urra. As mãos que deram ritmo àquelas linhas, cores àqueles espaços, são as mesmas que entram pela tela e a mutilam. E rasga, puxa e fura. O pó branco, remanescente das tintas que então usara, arde em suas narinas. Finalmente o quadro cai: é pisado com raiva.
Desce o restante da escada e percebe que todos estão de pé, olhando-o. Abre a porta. A pele se encrespa ao receber o mormaço da rua. O ar refrigerado fica para trás. Fica para trás o Movimento em Três Tempos. Para ele, não haveria três tempos, não haveria tempo algum nem movimento. Não haveria matéria daquela memória.
Folha de S. Paulo, 11/2/2014