Parece que FHC inaugurou um novo tipo de comunicação ideológica e política. Ao assumir o governo, recomendou que dele esperassem o contrário do que sempre prometera ao eleitorado. Mas justiça seja feita ao professor: ele dividiu sua biografia em antes e durante o poder. A ruptura entre o que escrevera e dissera fora causada pelo próprio poder.
Lula está levando adiante a mania, com um acréscimo precioso. Enquanto FHC negava o que afirmara antes de assumir o governo, Lula é mais completo, pois não apenas nega o que prometera antes de ser presidente, mas nega até mesmo aquilo que pensou e disse, já investido no cargo, senhor da chuva e do vento.
A nação cobrou coerência de FHC, coerência entre o candidato e o governante, coerência que não houve. Mas, como presidente, ele se ajustou à nova linha e nela ficou até o fim.
O mesmo não está acontecendo com Lula. Agora mesmo, numa de suas frases mais infelizes, ele comparou o bingo à prostituição infantil. Colocou no mesmo saco um dos mais sombrios escaninhos da sociedade (a prostituição de crianças) ao lado de uma modalidade de jogo que, disciplinada e operada honestamente, fica no mesmo plano das corridas do jóquei e das loterias exploradas pelo próprio Estado.
Não faz muito, ele defendia os bingos, que em tese podem gerar receitas, aumentando as burras oficiais. Chegou mesmo a sugerir (não se sabe a quem, talvez a ele mesmo) que o dinheiro dos impostos vindos do jogo deveria ser aplicado nisso ou naquilo, não me lembro se no Fome Zero, na construção de presídios ou na pavimentação de estradas. Não importa.
Costumo lembrar o imperador Vespasiano: o dinheiro não fede. "Pecunia non olet." Ele tributou os mictórios de Roma. Certamente inspirado nele, Lula pensou em promover o anunciado "espetáculo do crescimento" com o dinheiro do bingo. Por que não com a prostituição infantil?
Folha de São Paulo (São Paulo - SP) em 23/03/2004