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Feiticeiros e reis

 

RIO DE JANEIRO - Conheci um bailarino do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, famoso por sua beleza física e sua técnica apurada, que fazia os papéis mais nobres do repertório do balé clássico. Era o "partner" preferido das artistas estrangeiras que vinham se exibir no Rio, como Margot Fonteyn, Tamara Toumanova e outras. Tinha um fã-clube que o aplaudia quando se exibia em "pas-de-deux" de "Dom Quixote" e "Lago dos Cisnes".


Com o tempo, foi pegando papéis menos importantes, mas não queria pendurar suas chuteiras, vendia a alma para entrar em cena, fosse em qualquer papel. Nos últimos anos, foi oficializado como o feiticeiro do "Lago dos Cisnes", o mesmo balé que lhe dera glória.


Com a roupa e a máscara do feiticeiro, ele escondia a idade, a gordura e a técnica precária, limitava-se a fazer gestos terríveis, mesmo assim era aplaudido pelo conjunto da obra.


Li agora que Peter O'Toole, o magnífico "Lawrence da Arábia" de anos atrás, está contracenando com uma jovem em "Vênus", filme em que ele faz o papel de um ator decadente que se apaixona por uma quase-adolescente.


Ao contrário de outros que não passam recibo, submetendo-se aos agravos do tempo, Peter O'Toole reclamou que só lhe dão papéis de moribundo e, na melhor das hipóteses, em homenagem ao seu passado shakespeareano, faz um "Rei Lear" sem precisar de maquiagem.


É o destino em geral dos artistas e atletas que sobrevivem à sua obra. Thomas Mann descobriu tarde demais que depois do "Doutor Fausto" não devia ter escrito mais nada.


Jogador de futebol, com a idade, pode se transformar em técnico ou em comentarista esportivo. As grandes divas do teatro tornam-se sogras ou avós nas novelas de televisão. Sobram feiticeiros, e até mesmo os Reis Lears são raros.


Folha de S. Paulo (SP) 4/3/2007