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Farsa mágica

 

Dentre os romances da última fase de Jorge Amado, gosto principalmente de "O sumiço da santa", que se apresenta como farsa mágica, imaginada e realizada sob a égide religiosa de uma entidade que às vezes é Oyá/Iansan e outras é Santa Bárbara. Inventei essa classificação lembrando outra, relativa a "Teresa Batista", que chamei de "épico erótico".


As muitas nuances e diferenças entre a farsa, o burlesco, a sátira, a ironia, o humor, o engraçado, o abertamente cômico e o espirituoso, permeiam a obra dos que sabem e fazem rir. Num ápice, chegou Jorge Amado, com esse romance, a nível incomum e difícil, marcando de modo diferente a nossa literatura, normalmente presa a um excesso de seriedade. Notou Chesterton, num de seus ensaios, que o homem extremamente sério, além de enfadonho e triste, é capaz de transformar tudo em ídolo. Só quem ri passa ao largo do fanatismo.


Na tradição da obra de Jorge Amado, "O sumiço da santa" mostra os deuses do panteão afro-brasileiro como partícipes diretos da história e da ação, naquela interação que tem povoado a boa literatura de qualquer tempo. A técnica do romance é de extraordinária mobilidade, nela vale tudo e vale bem. O narrador mistura tempos e espaços, fazendo-o com uma nitidez de traços que dá ao livro uma bela transparência.


Como o autor entra no romance, e dele sai, com a maior desenvoltura e sem aviso prévio, também pessoas de verdade - homens do povo, artistas, políticos, executivos, gente de candomblé - contribuem para misturar farsa e realidade. Essa mistura funciona de tal maneira que não se pode saber, numa série de personae de uma categoria (capoeristas ou pintores, por exemplo) se todos os nomes são reais ou se as há também inventados. Na verdade, são todos inventados, mesmo os reais, e aí teríamos um paradoxo, como os que Jorge Amado sempre soube usar em seus romances.


A linguagem de Jorge, em "O sumiço da santa, vem a ser outro aspecto digno de estudo. As palavras - novas, antigas, reais, frutos de invenção, chulas, sofisticadas, bem soantes, cômicas, nobres, pornográficas, simplesmente engraçadas ou xingativas - se multiplicam e se misturam, empurrando a farsa a uma altitude inexistente entre nós.


Há na farsa, tal como a exerce Jorge Amado, toda a amplitude de uma tolerância que também zomba de si mesma. Contudo, apesar ou por causa, é esse romance da parte final da obra de Jorge Amado um hino à alegria de viver.


Nele conta o romancista o prazer dos sentidos - não só os do sexo, mas também os da boa comida, os da música, os de belas imagens - enfim todo e qualquer contentamento e felicidade de base sensorial e qualquer sentimento prazeroso que as circunstâncias possam proporcionar.


"O sumiço da santa", com personagens claros e definidos, com Manuel e Adalgisa, com seus padres e suas autoridades, abre um caminho diferente em nossa literatura porque ao mesmo tempo em que zomba ou parece zombar de suas gentes, mostra-as sob um aspecto de compreensão e de simpatia por vê-los que mantêm qualidades humanas em que o amor prevalece. Cenas como as de funções fisiológicas influindo nos acontecimentos provocam sorriso, senão riso mesmo. Farsa mágica, disse no começo. Farsa mágica sem dúvida. Farsa e magia de um romance que jogou uma larga claridade na ficção brasileira.


"O sumiço da santa", de Jorge Amado, Editora Record, tem projeto de fixação de texto da obra do autor sob o patrocínio da Organização Odebrecht, com supervisão do projeto de Silvia Resende e Caio Andrade. Fixação do texto Paloma Jorge Amado e capa de Pedro Costa com detalhes de ilustração de Carybé.


Tribuna da Imprensa (RJ) 30/1/2007