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A farsa

 

Ao admitir, respondendo a uma pergunta do senador Tasso Jereissati, que não houve atraso nos pagamentos da equalização dos juros do Plano Safra a bancos privados, a exemplo do que ocorreu com o Banco do Brasil, o ex-ministro Nelson Barbosa jogou por terra toda retórica com que tentava garantir que não se caracterizavam como empréstimo ao governo os atrasos de pagamentos, popularmente chamados de “pedaladas fiscais”.

O governo federal não poderia ter deixado de pagar no tempo devido a diferença entre a taxa de juros cobrada pelos bancos privados e o que subsidiava, pois não controlava esses bancos, o mesmo não acontecendo com o Banco do Brasil, de quem é acionista majoritário e, sendo assim, decidia quando pagaria o devido, levando anos para pagar.

Justamente o que é proibido pela Lei de Responsabilidade Fiscal, que caracteriza tal atitude como improbidade administrativa dos gestores, e levou, entre outros motivos, ao pedido de impeachment da presidente Dilma por crime de responsabilidade.

A LRF proíbe que o governo imponha suas necessidades aos bancos públicos justamente para impedir que ele os use para financiar suas ações, como se fizesse uma operação compulsória de crédito na instituição financeira que controla.

Tecnicamente, a presidente afastada está sendo julgada pelas “pedaladas fiscais” cometidas em 2015 e por três decretos suplementares editados naquele ano sem a autorização do Congresso. Parece pouca coisa, e é o que leva observadores internacionais, como o Le Monde ontem e diversas personalidades internacionais ligadas a movimentos de esquerda, a considerarem superficialmente que uma presidente aparentemente honesta está sendo sacrificada por pequenos delitos administrativos em um complô de parlamentares corruptos.

É por isso que o Le Monde diz que, se não é um golpe, é uma farsa o que está ocorrendo no Brasil. Se o jornal francês de esquerda está usando o termo “farsa” no sentido “narração burlesca, que provoca risos” ou “ato grotesco”, ou qualquer coisa do gênero, pode até ter uma certa razão. Pois é mesmo uma situação risível esta em que estamos, em que muitos deputados e senadores sob investigação se tornam juízes de uma presidente da República.

Mas se estiver usando a palavra “farsa” no sentido de “embuste”, “mentira ardilosa”, aí estará completamente equivocado, pois a presidente está sendo julgada por ter cometidos crimes de responsabilidade que levaram o país à breca, quebrando pela corrupção a maior estatal brasileira.

Nem mesmo a versão de que Dilma é uma mulher honesta que está sendo derrotada por políticos corruptos se sustenta, diante do que está sendo revelado pelas investigações da Operação Lava Jato. O que ajuda essa narrativa marota que engana com mais facilidade estrangeiros que não estão a par de nossa realidade - e nem se interessam em entendê-la – é que o processo de impeachment é orientado por uma legislação de 1950, que foi atualizada devido à Lei de Responsabilidade Fiscal, mas não para abrigar a lei que introduziu a reeleição no nosso sistema eleitoral.

Portanto, quando a lei do impeachment diz que um presidente só pode ser julgado por crimes cometidos “no mandato atual”, permite que todos os crimes cometidos no primeiro mandato fiquem temporariamente impunes. Por sorte dos brasileiros, o governo da presidente Dilma continuou “pedalando” em 2015 antes de “despedalar” na curta gestão do ministro Joaquim Levy, e por isso foi possível abrir o processo de impeachment com base no que ocorreu em 2015.

Mas foi nos anos anteriores, especialmente em 2014, de eleição, que todas as medidas que nos levaram ao caos em que nos encontramos foram feitas, justamente para permitir a reeleição de Dilma, baseada em uma fotografia do país que já não refletia a realidade econômica que estava sendo maquiada naquele mesmo instante.

Eleita, teve que convocar uma equipe econômica antagônica ao que vinha sendo realizado até então, para tentar reequilibrar a situação fiscal. O amplo contingenciamento realizado em 2015, citado pelo ministro Nelson Barbosa como um trunfo do governo Dilma, não passou de uma confissão de culpa do descalabro que causaram em busca da manutenção de um projeto de poder do PT baseado em um esquema de corrupção institucionalizada nunca visto no país.

São questões assim que os estrangeiros desavisados não levam em conta, ainda considerando que Lula é “adorado” pelo povo brasileiro, e que Dilma é uma mulher honesta cercada de corruptos.

Não sabem, por exemplo, que todos esses “corruptos” que agora se opõem a ela estavam a seu lado até pouco tempo, escolhidos pelo PT para darem governabilidade no Congresso em troca de apoio político, a maior parte das vezes pago com ilegalidades. Inclusive Eduardo Cunha, que deu a partida para o impeachment.

Um bom roteiro para uma farsa burlesca, sem dúvida. Mas é o que temos pelo momento na nossa vida política, e, sobretudo, está sendo realizado dentro do mais estrito cumprimento da Constituição brasileira, sob a supervisão do Supremo Tribunal Federal.

O Globo, 28/08/2016