Na notícia da morte de Raymundo Faoro, revezaram-se os epítetos. Perdemos na sua grandeza, de marca de uma geração, o historiador ou o cientista social, ou, até mesmo, no impacto do outro livro, "A Pirâmide e o Trapézio", o ensaísta e crítico literário. A tônica repetida em avalanche é a do constitucionalista, do príncipe dos advogados, chamado ao compromisso - limite de liderar a Ordem, no período decisivo de 77 a 79.
É quando, para além do desassombro da condenação das torturas, a coincidência dos dois gaúchos, um no Planalto, outro no Rio, Geisel e Faoro, assenta o caminho do retorno abolindo-se o AI-5 e restabelecendo-se o habeas corpus. Paradigmaticamente Faoro assumira a OAB - por 13 votos contra 11 - na mesma data em que, no pacote de abril Geisel, em 77, fechara o Congresso. É um biênio em que, mais que nunca, o começo do retorno ao Estado de Direito não se negociava com os partidos, mas com as corporações da liberdade.
A ABI, de Barbosa Lima e a OAB, juntos com a CNBB trouxeram ao plano de representação política a nossa sociedade civil brasileira, as vozes da cidadania, numa resposta da genuína cultura política nacional. E é, justamente, de nossas tensões entre classes e estamentos, e da lição de Max Weber, que Faoro nos daria o trabalho seminal "Formação do Patronato Político Brasileiro", a que o amigo Érico Veríssimo faria anteceder do titulo fulgurante, "Os Donos do Poder".
Tem a mesma ressonância, na grande interrogação da sociologia maior do País de "Casa Grande e Senzala" e de "Coronelismo, Enxada e Voto", do outro advogado e jurista, transposto ao estudo das regularidades sociais e do poder, Vitor Nunes Leal. A primeira edição dos "Donos do Poder", de 157 páginas, em 55 nascia do rasgo da visão. Lampejava, antes do tomo opulento de vinte anos após.
Faoro não hesitaria em disputar ao vocabulário das categorias do marxismo, de rigor, à época, a noção de estamento burocrático, das assincronias de tempos históricos e institucionais, na hermenêutica da verdadeira formação histórica, a assentar a visão matricial de verdadeiras estruturas sociais totais, como a esboçara Mauss, ou Georges Friedman, ou Maurice Hallbachs, ou Geroges Gurvilch.
A contribuição do gaúcho para o nosso compreender político continuava na instigante docência dos artigos de "Isto é", que ficam como exemplos, na melhor dimensão das cartas de Maquiavel, de uma pedagogia do poder, perdidas as linearidades, em nosso caso, do velho regime, do patronato econômico-político, desanimador dos comportamentos partidários, do idealismo dos governantes, como já o vira Oliveira Viana, em 91, preso o sistema nas meras rotações da cerimônia eleitoral.
Poucos são os pensadores entre nós a cometer esta dimensão Braudelliana, no horizonte histórico, por obra que bateu quilha e avançou nos tempos internos da nossa vida social, avultando os "Donos do Poder", entre os textos inaugurais da nossa compreensão.
Pouquíssimos serão os pensadores nossos, que atingiram a mirada fundadora. Nem Gilberto, nem Vitor, nem Sergio Buarque de Holanda, nem Caio Prado vieram à Casa de Machado de Assis. Raymundo Faoro, tal como Euclides, sentou-se na Academia, em tempo fugacíssimo, íntegro o olhar da vigília e do vigor crítico, que acicatava a sua consciência, a cobrar o amadurecimento institucional do País. Fechava um ciclo, como o da volta ao Estado de Direito, para abrir outro em nova interrogação nos seus escritos: "Existe uma política brasileira?"
A obra foi a do arremate derradeiro dentro da investigação incessante. Deixa incompleto o trabalho sobre o governo militar, construção que avançava e refluía, como a consolidar do Brasil profundo, por sobre o evento institucional, ou dos estritos embates do poder.
A Nação de fundo, amarrada no retrato de Canudos, ou na ruminação criadora dos "Donos do Poder", inovou a reflexão brasileira como desvelamento de uma realidade subtraída aos fastos da República incipiente, ou como formação enraizada e teimosa da nossa vida social, a reclamar os olhos de ver do pensador. Raymundo Faoro fica com a satisfação da obra canônica. Mais que recado de uma época, é corte do Brasil que se torna irrevogável pela sua leitura.
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro - RJ) em 23/05/2003