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Falta d’água ameaça Berlim!

 

Aqui estou, em mais um titânico esforço de reportagem deste periódico, depois de uma situação calamitosa, tudo fazendo para proporcionar aos nossos ávidos leitores uma cobertura tão completa quanto possível dos acontecimentos alarmantes que se sucederam vertiginosamente, a ponto de havermos temido o pior. Conferenciei com um vizinho, que é da Europa Oriental e, no primeiro momento, se encontrava trêmulo e pálido. Comunicamo-nos em inglês, já que ele fala uma variante de um dialeto servo-croata-montenegrino, ou algo assim, ou então estava uivando mesmo, nunca saberei.


- Zi Roossians arr cômingue, zi Roossians arr cômingue! - exclamou ele finalmente, pondo os olhos e as mãos juntas para o céu.


Em inglês montenegrino (ou servo, ou croata ou baixo estrogonóvio), como vocês naturalmente entenderam, gritava que os russos estavam chegando. Todo mundo se lembra dos filmes do tempo da Guerra Fria, onde os russos começam logo comendo crianças, imediatamente passando a mulheres, homens e alimárias diversas, conforme os pervertidos hábitos comunistas. No primeiro instante, senti o coração subir-me à boca do estômago e cheguei a perguntar a minha filha, que sabe umas coisas de russo (ela é fã de um conjunto de rock sérvio, minha família é um pouco singular), como se diz 'eu sou de Itaparica, Itaparica está fora dessa, chamem Toinho Sabacu para me levar de volta num saveirinho!', mas ela não sabia.


Ironicamente, o dia começara muito tranqüilo, numa bela manhã outonal de Berlim (o verão aqui cai num domingo, como já lhes expliquei há algum tempo), a amena chuvarada elevando a temperatura de cinco para escaldantes oito graus, tudo certo para o prosseguimento desta minha esforçada jornada cultural. Foi aí que abri a torneira e uma espécie de estampido, comparável, imagino eu, a um acesso de flatulência elefantina, saiu da bica. Mein Gott, was hab’ich getan - que fiz eu? Fechei a torneira rapidamente e, com muito cuidado, abri a outra. Novo pum paquidérmico, desta feita acompanhado de um odor, imagino eu ainda, compatível com sua origem presumida.


Cheio de coragem, prendi o fôlego e acionei, uma a uma, todas as saídas hidráulicas do apartamento, que é enorme. Se houvesse algum brasileiro por perto, certamente pensaria que os alemães comemoram São João numa data muito diferente da nossa, mas o vizinho me tranqüilizou. O inquietante fenômeno havia também acontecido com suas torneiras. A conclusão se afigurava inescapável: faltava água em Berlim! 'Zi voild iz acômingue to zi ende!' disse o vizinho - o mundo está acabando! Mas eu, já com a calma própria de um homem cosmopolita, fiz-lhe ver que devia ser a limpeza da caixa d’água, não era, não? Caixa d’água, que diabo era isso? Claro que ele não sabia, pois, ao que parece, só se usam caixas d’água no Brasil e em partes do Gabão, eu havia me esquecido disso. Uma vez, quando contei a um americano que usamos caixas d’água e 'limpamos' as ditas uma ou duas vezes por ano, ele passou o resto de nosso encontro como se eu fosse contaminá-lo de peste bubônica e perguntou quantas vacinas os brasileiros tinham de tomar por mês.


Descobrimos finalmente que tinham avisado antes, embora não nos tivéssemos dado conta, que haveria um conserto no encanamento da rua, o qual terminaria às 10 horas. Ah, bom, tudo bem, então o mundo não estava acabando e, melhor ainda, os russos não estavam chegando, com Putin vestido de Marechal Zhukov à frente e hordas de comedores de gente atrás. Sim, dez horas, às dez horas tudo voltaria ao normal. Dez horas? Que horas eram? Dez horas em ponto. Dez horas em ponto? Mein Gott outra vez, a notória precisão germânica!


Tarde demais. Numa coreografia diabólica, tanto as torneiras do vizinho quanto as minhas começaram a espirrar estrepitosamente e aquele chuveirinho tipo telefone que aqui se usa rodopiava enlouquecido, todas as saídas de água ejetando uma lama marrom e com a mesma fragrância que anteriormente. Perdão se esta coluna está saindo meio escatológica hoje, mas não posso fazer nada, pois o primeiro dever do jornalista é para com a verdade e a verdade é que tudo indicava que o elefante tinha passado do anúncio ao ato - e não era qualquer elefantinho, devia ser uma daquelas manadas de Tarzan, depois de ter comido capim vencido.


Na condição de chefe e defensor da família, encarei a ofensiva com bravura. Como um valente goleiro bombardeado por chutes e rebotes aos 45 do segundo tempo, estiquei-me cá, voei lá, fiz uma ponte acolá e, depois de uma luta que pareceu mais longa do que a espera do atendimento de um serviço bancário, consegui, coberto, como prefiro acreditar hoje, de lama e glória, estancar a quase fatal metralha. Pronto, agora era só abrir vagarosa e cautelosamente cada torneira e esperar que chegasse água limpa.


Dramático engano. A máquina de lavar, até então quieta e indiferente, resolveu também aparecer, escancarou sozinha a portinhola frontal e, depois de algumas sacudidelas, contribuiu com seu generoso quinhão para a melança geral. Sem ânimo, assisti imóvel ao número dela, que, Deus seja louvado, não durou mais que uns dois minutos. E, a essa altura, já tínhamos providenciado a destemida ajuda de Herr Brehmer, que cuida da casa aqui. Ele me deu explicações filosóficas, convocou uma equipe especializada em tais catástrofes e, depois de algum tempo de trabalho, declarou que eu já podia tomar banho, o que fiz não sem certo temor. Resta-me o consolo de que tudo serve de aprendizado e experiência nesta vida e, antes do chuveiro, refleti que agora sei por experiência própria como deve sentir-se um parlamentar brasileiro.


O Estado de S. Paulo (SP) 11/11/2007

O Estado de S. Paulo (SP), 11/11/2007