A linguagem popular chama de dolorosa a cobrança que chega, ao final de uma noitada com os amigos num bar. Desgraçadamente, os últimos dias têm nos lembrado a quanta dor essa metáfora pode aludir. Sabemos todos, inclusive quem finge esquecer, que não há almoço grátis.
Acontecimentos recentes confirmam que a conta a pagar, quando chega, pode mesmo vir envolta em outra metáfora, a de cortar na própria carne, como tantas vezes governantes convictos de seus acertos fingem prometer, em tom de valentia e bazófia, logo antes de passar adiante a fatura para que outros a saldem.
Tesouras e facas nos chamam agora à realidade.
Um ajuste fiscal cheio de cortes é fundamental para viabilizar o futuro e corrigir os erros do passado — como sabe qualquer pessoa minimamente lúcida e informada. Certamente o sabiam durante a campanha eleitoral os governantes, mais informados do que todos. Calaram por falsidade e esperteza marqueteira.
A tesoura era indispensável, exigida por equívocos na condução da economia. Despesas de custeio exageradas, descontrole fiscal, contenção de preços administrados, desonerações irresponsáveis, projetos megalômanos que não saíram do papel, incompetência gerencial, desperdício generalizado, crescimento pífio, alto endividamento público, deterioração do mercado de trabalho, decisões mais baseadas na ideologia do que na razão, tudo se somou à queda nos preços internacionais e contribuiu para que a situação econômica chegasse a esse ponto.
Sem falar na corrupção, que, embora gigantesca, foi responsável apenas por 10% das perdas anuais da Petrobras, ficando os outros 90% por conta de erros de gestão — segundo o relatório da empresa. Por despreparo, teimosia ou disciplina partidária.
Erros que se repetem agora no front político, quando não se planeja reduzir gastos correntes ou governistas se recusam a apoiar o ajuste inevitável, na hora da conta a pagar. E suas lideranças abdicam da responsabilidade de assumir seu papel pedagógico e explicar as razões dessa necessidade inescapável.
Um estadista abandonaria os adjetivos desqualificadores contra quem pensa diferente e traria números e razão ao debate. Mas estadista parece ser animal em extinção. A ser combatido, como parte do risco de se valorizar alguma pretensa elite.
No meio do alarido selvagem de xingamentos, falsidades e agressões de todo tipo que, mesmo após meses do fim da campanha, ainda se mantém atuante no bate-boca entre políticos e na superficialidade vazia e rasteira dos comentários nas redes sociais, perde-se um tempo precioso. E não é de hoje.
Talvez a perda de tempo seja o maior prejuízo nacional. Responsável por que não se saia do lugar e que nem ao menos se consiga enxergar direito o que deve ser examinado.
Nesse quadro, as facadas que se multiplicam em ataques covardes pelas ruas chamam a atenção para outras dores e outros cortes. Toda a discussão sobre redução da maioridade penal, por exemplo, se desvia do que devia estar em foco. Não se trata de saber se o ECA protege demais ou de menos, ou se cadeia aos 16 anos ajuda ou atrapalha.
A pergunta que está no fundo é outra, não formulada: você é contra ou a favor da impunidade de criminosos? Sejam eles assassinos ou ladrões. Esclarecido isso, quais as sugestões? Ficamos de braços cruzados batendo boca? Ou definimos as punições, quando necessárias? É outro patamar de debates, sem prejuízo do exame de medidas preventivas e da análise do arcabouço penal.
Juristas, educadores e psicólogos estão certos: é melhor construir escolas que presídios. Mas hoje no Rio o que falta não são prédios escolares, podemos deixar as construtoras em paz por algum tempo.
Dá para ir mais rápido rumo ao futuro. Precisamos é formar e apoiar concretamente os professores que nelas trabalham — quando há. Garantir que as crianças e os adolescentes as frequentem, sem zanzar pelas ruas em bandos, em busca de algo que, entregue a receptadores, possa ser transformado em grana para adquirir uma roupa descolada ou umas pedras de crack, e ainda traga a admiração da galera, sobretudo das meninas.
Evitemos que repitam sua própria situação, em famílias onde o pai sumiu no mundo há anos, ou foi morto ou preso, enquanto a mãe que engravidara adolescente está às voltas com companheiros que espancam, e a avó faz o que pode — o que raramente é mais do que chorar e rezar. Isso vem de longe e está sendo construído há muito tempo. Tempo que se perdeu em discussões intelectuais bizantinas ou em exploração política da desgraça alheia.
Na hora em que chega a dolorosa conta a pagar, dói mesmo. Muito. Dor que aumenta a cada dia. Se não começarmos a pagar já, ficará insustentável. O mínimo que se exige das cabeças pensantes é responsabilidade e compreensão da urgência para distinguir as prioridades.
Essa é a espada que pesa sobre todos nós. Muito mais séria do que a espada do impeachment, olimpicamente descartada esta semana pela presidente em sua entrevista no México.