No último fim de semana a imprensa noticiou que uma bala perdida atingira uma senhora de 61 anos no leito de um hospital e, com o projétil alojado na cabeça, ela corria o risco de ficar cega do olho direito. “Quando a gente imaginou que ia acontecer isso comigo?”, ela exclamou para o filho após a cirurgia para reconstrução dos ossos do rosto.
De fato, como não existe ponto de indignação na língua portuguesa, fica difícil registrar em todas as proporções o que se passa no Estado do Rio em matéria de violência. Os sinais de exclamação e interrogação são insuficientes, assim como os adjetivos e as frias estatísticas, para dar conta, por exemplo, de uma rotina como a das balas perdidas.
“Perdidas” é maneira imprópria de dizer, porque elas sempre encontram seu destino, inclusive nos endereços mais improváveis como o de um hospital. Ou de um colégio, como aconteceu com Caíque, de 6 meses, a 15ª criança alvejada em 2018 na região metropolitana, onde houve 24 disparos por dia no período, segundo o aplicativo Fogo Cruzado. Após ser baleado quando estava no colo da mãe, que aguardava a saída de outro filho, ele foi submetido a uma cirurgia e sobreviveu. O pai desabafou: “Nem na escola e no aconchegante colo da mãe nossos filhos estão livres do perigo.”
Na verdade, o absurdo pode ser maior, como o caso da senhora grávida atingida por um tiro. Ela fez cesariana, salvou-se; mas o bebê, não. Chegou-se a esse extremo paradoxo: mata-se a tiro até quem não nasceu. E isso acontece inclusive porque há mais facilidade para a aquisição de armas de fogo. Como a manchete de ontem mostrou, a compra cresceu dez vezes no país entre 2004 e 2017.
No Rio, onde nem a intervenção federal inibiu os índices de criminalidade, o problema adquire uma trágica dimensão assim resumida pelo presidente da ONG Rio de Paz, Antonio Carlos Costa: “A morte de crianças vítimas de balas perdidas é a face mais hedionda da violência”. E é o retrato perverso de uma forma de extermínio de nosso futuro.