Desta vez, não faltam assuntos para comentar: mensalão, Cachoeira, sucessão na Prefeitura de São Paulo, atraso nas obras da Copa do Mundo -a lista é suculenta.
Mas passei a semana às voltas com um caso antigo, desses que nunca ou dificilmente são resolvidos. No fundo, um problema pessoal e profissional. A editora Objetiva vai relançar um livro de 1982, encerrando o projeto relativo às memórias de JK, que contou com a minha colaboração, sobretudo na fase final, escrita e publicada depois da morte do ex-presidente.
Embora não seja uma obra autorizada, evitei tocar nas circunstâncias do desastre na Rio-São Paulo, em 22 de agosto de 1976.
Meu compromisso era assumir os pontos de vista do biografado, com quem trabalhara nos três volumes anteriores, mas aproveitando apontamentos e instruções que ele deixara comigo justamente para escrever sobre o período em que foi cassado, respondeu a vários e absurdos IPMs, foi exilado e preso em condições infamantes.
Sobretudo, passava por uma crise conjugal que ele, em hipótese alguma, faria qualquer referência. Além disso, vivíamos em pleno regime do arbítrio, o projeto de suas memórias foi inicialmente vetado pelos militares. Foram necessárias uma infinidade de complicadas negociações com o governo, sobretudo com o Ministério da Justiça, cujo titular, na época, era o Armando Falcão, que por sinal havia sido ministro da mesma pasta durante o quinquênio de JK.
Evidente que, no desempenho do compromisso assumido com ele, sua família e seu editor, em alguns trechos tive de abdicar de minhas opiniões pessoais.
Repito: apesar de não ser uma biografia autorizada, eu estava cumprindo uma tarefa profissional, na qual me sentia envolvido pela amizade e pelo companheirismo que marcara os sete anos de nosso trabalho comum.
Na primeira edição de "Memorial do Exílio", não abordei as circunstâncias de sua morte, que estavam e em parte ainda continuam imprecisas. A Câmara dos Deputados, na ocasião, em face das versões que corriam aqui e no exterior, criou uma comissão externa para estudar o assunto. A situação política era delicada e o parecer final não foi conclusivo, transferindo o problema para ocasião mais favorável.
Recebi as provas da nova edição. Por sugestão do editor Roberto Feith, mudei o título para "JK e a Ditadura". Sem as amarras da repressão política, e tendo morrido a viúva de JK, pude preencher as lacunas que propositadamente deixara quando escrevi o livro.
Acontece que, em 2003, por sugestão e colaboração de Anna Lee, publicamos pela mesma editora o "O Beijo da Morte", que aliás ganhou o Prêmio Jabuti na categoria de romance-reportagem. Nele, fizemos o levantamento das versões que ainda existem sobre a morte de JK, João Goulart e Carlos Lacerda, que haviam tentado uma Frente Ampla contra o regime militar e morreram no espaço de nove meses, no contexto da Operação Condor, que eliminou as principais lideranças democráticas da América Latina, sobretudo no Cone Sul.
Foi um trabalho bastante pesquisado, mas sem a preocupação de chegar a uma conclusão definitiva, pois até agora o atual governo ainda não colocou em funcionamento a Comissão da Verdade, mantendo o sigilo sobre as operações secretas do regime militar. Que continua havendo um mistério na morte dos três líderes da Frente Ampla, há.
Não necessariamente em ações criminosas, mas em circunstâncias obscuras, mais do que suspeitas, que condenam veementemente o já condenado regime militar.
Pinçando de "O Beijo da Morte" os trechos relativos apenas a JK, preenchi as lacunas que havia deixado na primeira edição do último livro das suas memórias. Na realidade, juntei os dois livros: "Memorial do Exílio", de 1982, e "O Beijo da Morte", de 2003, na parte relativa à sua morte no acidente de 1976.
No depoimento prestado na comissão externa da Câmara dos Deputados, o ex-governador Miguel Arraes, que na ocasião do desastre estava na Argélia, bem informado dos movimentos políticos e militares nos países do Terceiro Mundo, declarou com indignação: "Não foram acidentes, mas atentados".
Folha de São Paulo, 20/4/2012