De uns tempos para cá, as festas coletivas estão ficando cada vez mais misturadas. Natal, Carnaval, Sexta-Feira Santa. Pouco a pouco, se reduzem a feriados que servem para encompridar o final de semana, todos se sentem obrigados a aproveitar de seu modo ou de modo nenhum. Aí pelo interior, no mais fundo do país e do homem, devem boiar algumas ilhas isoladas de tradição, mas nos grandes centros (Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Salvador, Porto Alegre, Belo Horizonte) a festa se resume mesmo na festa e no feriado, às vezes nem lembramos o que estamos comemorando.
Certo, existem alguns temperos específicos, como os desfiles de blocos e escolas no Carnaval, a ceia de Natal e o hábito de trocar presentes, a canjica ao leite e a bacalhoada das Sextas-Feiras Santas -e tremo ao reduzir a data sagrada dos meus amigos cristãos a um bródio regado a azeite e azeitonas pretas. Mas reagir quem há de? Assim é, por culpa de todos nós, autoridade e povo, que as festas são mais coletivas do que festas em si mesmas.
Mal acabamos o Natal, entramos no Carnaval. Há agitação na rua, todos procuram se programar, numa época de computação quem não está programado está por fora ou, pior, está morto, fora da seiva vital que nos mantém à tona. Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu.
Jornais, revistas, TVs, todos ensinam dicas, sugerem festas e alternativas -o lazer massificado, consumível, torna-se quase uma obrigação, uma chatice, um dever que precisamos cumprir.
Para falar a verdade, nem sequer tenho saudades dos Carnavais de antanho. Com irrelevantes diferenças disso ou daquilo, eram a mesma coisa. Bem verdade que consegui juntar no meu saco alguns Carnavais memoráveis, solitários, gostosos, em que a folia foi exercida lucidamente pela carne pagã e destacada.
Nada de ajuntamento, pois não creio que mais de três pessoas juntas consigam algum momento importante -a não ser no futebol e nas guerras.
Não sei se já contei, mas aí vai outra vez. Ali pelos anos 70, numa sexta-feira anterior ao Carnaval, peguei meu carro e minha namorada para esticar os quatro dias que tinha pela frente. Rodei todos os motéis da Barra, não havia vaga, tudo cheio. A noite estava vazia, não havia ninguém nas ruas, metade da população estava em cima da outra metade.
Parecia que o Rio, o Brasil inteiro haviam marcado encontro nos hotéis de alta rotatividade. Vaga -um garçom conhecido, que se chamava Evaristo, me garantiu- só pela madrugada. Graças ao Evaristo consegui um apartamento com banheira jacuzzi, aluguei-o para os três dias e quatro noites, até a Quarta-Feira de Cinzas. O motel ficava à beira da praia, enfim, um programa decente, honesto e gostoso. No dia seguinte, sábado de Carnaval, ao acordar para ir à praia, vi meu carro sozinho no imenso pátio de estacionamento. Não dei importância. Era o único hóspede, os outros foram todos para o que chamam de "folia".
Imaginei que, à noite, o pátio estaria novamente cheio, com novos (ou os mesmos) fregueses. Passou o sábado, passaram o domingo, a segunda e a terça que dizem gorda -e meu carro continuou como ocupante solitário do enorme pátio. Hóspede único do hotel, a princípio estranhei. Mas como? Não era Carnaval? Onde estavam todos eles?
Ao contrário do poema de Manuel Bandeira, não estavam amando profundamente. Estavam por aí, fazendo alguma coisa qualquer, mas não profundamente. Bem, aproveitei aqueles dias brancos e solitários, amei muito e bastante, creio que a namorada aprovou o Carnaval laborioso e integral que praticamos.
Na quarta-feira, quando voltava para a cidade a fim de assumir a faina humana, ia saindo do estacionamento e esbarro com um velho fusca que vinha chegando. Dentro dele, o casal não parecia deslumbrado: apenas cansado, como se a festa tivesse esgotado todas as energias que eu havia gasto nos três dias anteriores.
Nem tomei conhecimento dos desfiles, da escola de samba vencedora, das cinzas que estavam sendo distribuídas nas igrejas. O pátio do motel voltou a ficar cheio de carros cujos donos precisavam dormir profundamente. Evoé Momo!
Folha de S. Paulo, 12/2/2010