O teto era creme, as paredes eram creme, o chão estava revestido de placas em cor amarelada que parecia creme. Uma caixa, nunca uma casa ou quarto, na qual tudo era creme, menos o leito, branco, que se destacava como peça maior do complicado labirinto de aparelhos que faziam um barulho suave mas irritante.
Na tela de pequenos monitores moviam-se pontos e linhas de luz, lacraias verdes e trêmulas, números apareciam e desapareciam, marcando as batidas do coração, a temperatura do corpo, a pressão do sangue em suas veias adormecidas.
Sentia-se mais fatigado ao olhar aquele mundo creme, asséptico e gelado, preferia se distrair com a ampola de plástico pendurada na haste também creme, o soro escorria lentamente, penetrando gota a gota na artéria inchada de seu braço.
Pior do que o mundo creme, do que o ruído dos aparelhos, era o tempo. Tempo que não passava, se ele olhasse para o lado, veria o relógio redondo, ele também creme, sempre o creme e sempre o também, marcando com má vontade um tempo que não passava. Ele se controlava para não olhar o relógio, só assim teria a impressão de que o tempo andara. Não adiantava espaçar um olhar do outro, imaginava que passara uma hora, olhava, o relógio andara cinco, dez minutos.
Noites que eram iguais aos dias, não havia diferença, o mundo estava sempre creme, a luz era sempre a mesma, nem forte nem fraca, e o ruído dos aparelhos aumentava a eternidade do tempo que não andava, cada minuto igual ao outro, como se fosse um único, um eterno minuto.
Apesar de adormecido pelos remédios, sentia que sua casa-corpo voltara a ser habitada por ele. Não, nada disso, ele era uma mistura imprecisa, um blended fabricado por outros, pelo Estado, pelo Registro Civil, pela família, pelo mercado. Quem habitava a casa-corpo era um "eu" desconhecido.
Folha de S. Paulo (RJ), 9/3/2014