"Estimado senhor meu pai. Espero que esta vos encontre gozando da mais perfeita saúde bem como a todos os nossos familiares em Portugal. Seja-me permitido, senhor, prestar a vossência relatório acerca da importante missão que a mim foi por vós confiada: encontrar, neste país chamado Brasil, onde resido, um lugar onde pudésseis instalar um entreposto comercial, aplicando assim os recursos que nossa família auferiu no bem-sucedido comércio das especiarias. Destarte, dirigi-me ao lugar conhecido como São Paulo de Piratininga, que, segundo informações por mim obtidas, preencheria as condições requeridas por vós, a primeira das quais era evitar o trópico, por vós considerado região insalubre, de gente preguiçosa, indolente. O dito lugar, ao contrário, teria ares frios e temperados; seria uma terra mui sadia, fresca e de boas águas, situada entre dois rios, o Tamanduateí e o Anhangabaú. De Recife, onde resido, tomei um navio, e depois em lombo de mula, subi até o planalto, onde fica São Paulo de Piratininga. Quando lá cheguei, a 25 de janeiro do ano da graça de 1704, invadiu-me o desânimo.
É um lugarejo, meu pai. Um pequeno triângulo limitado por conventos: o de São Francisco, o de São Bento, o do Carmo.Tem foros de Vila, tem pelourinho, é considerada a principal localidade da capitania, mas vivem ali 5.000, 6.000 pessoas quando muito, a maioria índios e mamelucos. Muitos nem sabem falar português. Moram em casas de taipa, cobertas de sapé. Cultivam pequenas roças de milho, feijão e mandioca, da qual fazem a chamada farinha-de-pau; o solo não é da melhor qualidade. A vila fica longe do litoral, e, do ponto de vista de comércio, está completamente isolada. Para obter ganhos, são obrigados a sair dali; assim, organizam bandeiras, expedições que percorrem longuíssimas distâncias para aprisionar índios e procurar ouro e pedras preciosas. Ouro e pedras preciosas, que eu saiba, não encontram; um dos bandeirantes morreu pensando que tinha descoberto esmeraldas, e eram apenas pedras verdes. Quanto aos índios, são maus escravos.
Hospedei-me numa pousada suja e sem conforto e, tendo em mente vossa ponderação, segundo a qual o passado de um lugar dá preciosas indicações sobre seu futuro, saí a inquirir sobre a história de São Paulo de Piratininga, sobre figuras ancestrais que pudessem servir de orientação e exemplo, assim como os patriarcas de nossa família a vós serviram de modelo.
Falaram-me do padre José de Anchieta, guia espiritual e poeta. Indaguei acerca de sua poesia. Disseram que dela pouco sabiam, mas mencionaram um detalhe que consideravam interessante: por falta de papel e tinta, Anchieta escrevia na areia da praia; à medida que o fazia, as ondas iam apagando os versos. O que considerei insólito, para dizer pouco.
Todo poeta quer divulgar sua obra; quer vê-la impressa, sob a forma de livro, de modo que a vendagem possa proporcionar um retorno financeiro. Escrever na areia é, para mim, um desperdício da energia criadora. Acho que a vós parecerá o mesmo.
Falaram-me de um homem que não quis ser rei. Isso aconteceu, em 1640, quando Portugal libertou-se do jugo da Espanha; a notícia só chegou a Piratininga no ano seguinte, um exemplo da dificuldade de comunicação que se experimenta neste lugar remoto. Mas, quando chegou, provocou verdadeira convulsão: os habitantes decidiram que, a exemplo dos portugueses, também eles se tornariam independentes, governados por um rei: Amador Bueno da Ribeira, homem rico, digno, sábio. Foram à sua casa, pediram que aceitasse ser monarca. Para surpresa geral, Amador recusou e, diante da indignação provocada por sua atitude, teve de fugir daquela gente, refugiando-se no mosteiro de São Bento. Coisa que a mim surpreendeu. Ser rei é o sonho de todos nós, é o sonho que eu sempre alimentei desde a infância, baseado nas histórias contadas por vossência. Mas Amador Bueno da Ribeira não quis ser rei. Faltou-lhe, em meu entender, audácia, coragem, visão, enfim, todas as condições necessárias para quem quer subir na vida. Mas os habitantes deveriam ter escolhido outro rei. Não o fizeram. Por quê? Porque, no meu modesto entendimento, também são tímidos, carentes de arrojo e valentia.
Em suma, não considerei o passado do lugar inspirador. Mas e o futuro? Em busca de resposta para essa pergunta procurei uma mulher conhecida como Maria Adivinha, famosa na vila por acertar suas previsões. Tive de pagar, adiantado, uma boa quantia; e o que ouvi dela convenceu-me apenas de que não passa de uma mentirosa. No escuro aposento, em meio da fumaça de ervas que queimavam, ela fechou os olhos e disse que via ali, em São Paulo de Piratininga, uma gigantesca cidade, povoada por milhões e milhões de pessoas; prédios gigantescos, ruas imensas cheias de veículos que, detalhe inverossímil, deslocavam-se sem tração animal. Seria a maior cidade do Brasil e uma das maiores cidades do mundo, e nós faríamos bem em colocar ali o dinheiro de nossa família.
Constatando minha incredulidade, que logo se transformou em irritação, ofereceu-se para me prestar, por uma soma adicional, outros serviços, estes relacionados ao prazer carnal. Depois da longa viagem, depois de meses sem mulher, eu estava carente, como vós, meu pai, bem podeis imaginar. Fomos, pois, para a cama, e aí chegou ao auge minha frustração e meu desencanto. Porque, embora fosse bela, a Maria Adivinha, embora fosse mulher de amplas cadeiras e seios opulentos e embora o ímpeto dos meus 26 anos garantisse um bom desempenho, eu falhei, meu pai, falhei miseravelmente. Coisa que só posso atribuir aos maus eflúvios da região. Este lugar nunca vai dar certo. E eu, tendo concluído esta missiva, vou-me daqui antes que seja tarde demais, antes que me invada, para todo o sempre, o espírito do fracasso."
Folha de São Paulo (Revista Mais)
(São Paulo - SP) em 25/01/2004