Li em algum jornal que a Fifa, essa organização da qual volta e meia se evola um odorzinho de mutreta, que lida com cachoeiras de dinheiro, cujas decisões são às vezes vistas como fruto de processos viciados e que, enfim, não é nenhuma casa pia, ameaçou fazer a Copa de 14 na Espanha, se as obras aqui não forem apressadas – ou até mesmo iniciadas, como dizem que é o caso de muitas. Por artes do caprichoso destino, isso pode interessar à Espanha, que tem estrutura e está pendurada. Pode interessar a toda a Europa, aliás, devido ao reflexo dos problemas espanhóis na economia do euro. E talvez o Brasil nem conseguisse ir aos jogos, porque os espanhóis poderiam aparelhar os aeroportos para otimizar sua já tradicional deportação de brasileiros.
Apressar as obras significa, como também se divulga muito, relaxar controles sobre custos e gastos. Claro, qualquer que seja o resultado dos debates, todo mundo sabe que haverá roubo. Se for feita uma enquete, tenho certeza de que a grande maioria dos brasileiros acredita que vai haver roubo nessas obras, com sigilo, sem sigilo, de que forma for. Existirá sempre um jeito de roubar, entendido isto como faturamento fraudulento, propinas, desvios de materiais e serviços e, enfim, todo tipo de trambique aplicável, num repertório em que seguramente somos líderes mundiais.
Sim, todo mundo está cansado de saber disso. Então para que tanta complicação inútil, se tudo vai ser mesmo garfado, sempre foi, desde que nos entendemos e ninguém tem problemas ao ganhar dinheiro desse jeito? Há tantos estádios a construir, tantos aeroportos a reformar, tantas obras públicas, tantas armações que podiam já estar rendendo grana e ficamos nessa demora ridícula, repetindo atos ou palavras que nunca resolveram nada. Tanto o que surrupiar já dando sopa aí e esse pessoal perdendo tempo em formalidades que todo mundo sabe que não servem para nada, a não ser para embalar o sono dos que as ouvirem, em forma de discursos, no Senado Federal. Não havia nem necessidade da mãozinha que a Fifa está querendo dar (ou meter).
É difícil assistir a um noticiário de televisão em que não seja mostrado o desbaratamento e prisão (e imediata soltura, em questão de segundos) de pelo menos uma quadrilha que fraudava algum órgão público. Difícil, não, impossível; não me recordo de nenhum. Se qualquer político for acusado de ladrão numa roda de conversa, dificilmente alguém o defenderá com convicção, porque confere com o padrão que nos acostumamos a aplicar à nossa sociedade. Nenhum tipo de falcatrua ou sordidez nos surpreende e é bastante comum que, nessas conversas, alguém lembre uma história bem pior.
E os parlamentares, se não são todos ladrões em sentido amplo, são beneficiários impudentes de uma abundância obscena de privilégios, a começar pelo imoralíssimo foro especial, que os põe numa acintosa classe acima dos governados, a quem não prestam satisfações e cuja vontade ignoram, se não coincide com seus interesses. Há sentido nas miríades de “ajudas”, nos fantásticos seguros de saúde, nas generosíssimas viagens e em tudo mais de que desfrutam para mal e pouco trabalhar, isto quando trabalham? Os estrangeiros têm dificuldade em compreender como uma sociedade aceita esse deboche deslavado, que ainda lhe é impingido com arrogância e ostentação de poder. Não acho de todo descabida a semelhança que vejo entre esses privilégios e os da corte de Luís XIV, na França do século 18. De fato, como já disse aqui, o Estado entre nós não é o rei, que não temos; mas o Estado entre nós é dos governantes e a soberania é deles, respeitados os donos da economia.
No serviço público, a falta de compostura e o nepotismo, embora hoje disfarçado pelos intrincados laços familiares dos brasileiros, são a regra. O que é público não é de ninguém, começando pelo material de escritório levado para casa e terminando pelos cartões corporativos. Ocupantes de cargos públicos de relevância se associam secretamente a empresas de “consultoria” e assim ganham fortunas, fazendo na verdade advocacia administrativa e tráfico de influência. Egressos do serviço público caem na mesma prática, pois o serviço público aqui não é para o público, mas para quem o presta, ou alega prestar. O serviço público é uma oportunidade para “se fazer”. Comportam-se assim até os menos rapineiros, que se contentam em “colocar” um filho aqui ou acolá, ou bem encaminhar seu futuro depois da política, apesar de já bastante acolchoado por aposentadorias magnânimas e benesses liberais.
E ninguém, afinal, é punido por nada. Se antes isso se aplicava somente aos ricos e poderosos, agora vale para todos. A melhor maneira de matar alguém no Brasil é ficar bêbado, pegar o carro e atropelar a vítima. Aí o atropelador se recusa a usar o bafômetro e vai para casa, responder a processo em liberdade, para, no caso difícil de vir a ser condenado, cumprir a pena também em liberdade. Embriaguez pode até virar atenuante, surto psicótico. Matar gente, aliás, é cada vez mais fácil, talvez mais que roubar. Matar bicho nem tanto, mas pega mal o sujeito sair dizendo que está sob a proteção do Ibama.
É por essas e outras que eu digo: vamos parar com essa enrolação toda, que chega a nem ficar bem, parece sabotagem com a Seleção. Não já estamos exaustos de saber que, em ocasiões semelhantes, meteram a mão na granolina para valer? Não é assim que se faz e sempre se fez neste país, como costumava lembrar um grande líder nosso? Então vamos liberar logo essa grana e sossegar a rapaziada, corrupto também fica estressado. E, afinal de contas, não somos assim tão bestas, pensam que estão nos enganando, mas não estão. Nós sabemos de tudo e não somos bobos, somos apenas omissos, submissos, cínicos e cada vez mais moralmente insensíveis – ninguém é perfeito.
O Globo, 17/7/2011