À entrada da reta final das eleições francesas equilibram-se as opções entre Nicolas Sarkozy e Ségolène Royal. A queda anterior da candidata à Presidência - companheira da safra de mulheres pretendentes, de Hillary Clinton e Madame Kirchner - veio menos da sua alegada imaturidade política que da busca de um denominador comum para o que seja hoje o socialismo na Europa após a globalização e a hegemonia. O tom foi finalmente encontrado e permite hoje que todas as lideranças ainda céticas quanto à candidata se somassem no último esforço. Aí estão os chamados elefantes do PIS numa só manada, de Strauss-Kahn a Laurent Fabius e a Lionel Jospin, o último reticente ainda ressabiado com a catástrofe inesperada do último pleito.
A prática da esquerda hoje abandonou toda carga ideológica ao lado de um programa denso e cortante frente ao situacionismo. Mesmo porque o que hoje enfrentam as vanguardas do Ocidente é o castigo imposto pelos cenários da hegemonia frente à viabilidade da alternativa. O antiliberalismo alimenta-se hoje de uma realpolitik, muito mais do que da ambição do confronto, de um mundo que passou da velha dominação para os controles globais. Defrontam-se os fatos consumados da complexidade irreversível, no enlace dos capitais, suas economias de escala e suas predeterminações de mercado.
Ségolène finalmente avançou quando abriu mão do rigor teórico, aceitou a proposta reformista e um passo a passo frente ao atual regime francês, sem propostas contundentes, quanto ao seu modelo econômico, e cifrando-se a minimalismos de diferenças propostas, da taxação popular; do tempo de aposentadoria ou do valor efetivo das pensões. O que importa é abalar a inércia arraigada do sistema e para tal a esquerda vai a um voluntarismo da mudança, sem confiar em que o avanço natural da racionalidade esteja do seu lado - tal o conformismo do status quo.
Sarkozy, o candidato situacionista, dá-se conta de que pode fazer até uma campanha muda de propostas, deslizando sobre os trilhos lubrificados da atual prosperidade sem sustos da nação francesa. A imagem é de segurança definitiva, no aplomb das respostas e na tranqüilidade de que as farpas da esquerda nos seus debates políticos vão hoje a pontos incidentes, ou menores, para a plataforma de um futuro que já está aí.
Essas tensões vão à política imigratória, acutilada mais pela ressaca das violências urbanas em bairros árabes aculturados do que, de fato, pela flexibilidade notória com que a França já se transformou no primeiro país islâmico hoje da Europa. Marginal, na presente campanha, o tema encontrou o ninho óbvio e solitário das arengas radicais de Le Pen.
Ségolène cresceu, sim, nas discussões emergentes do aperfeiçoamento democrático, ao propor o instituto dos comitês cidadãos, espécie de ombudsmen coletivo, capazes, em cada Departamento, de denunciar os abusos do Estado fora do aparelho e do procedimento burocrático e judicial da luta, finalmente estéril, contra o crime e a desordem. Mas o que a campanha sobretudo demonstra é a exaustão da temática de esquerda para, de fato, pensar-se um outro mundo da prosperidade ocidental diante da hegemonia trazida no seio da globalização e do que possa hoje a ação do Estado. Ou até mesmo os movimentos sociais, atingidos pelo massacre mediático e pelo cansaço da mobilização do fim do século passado.
Nunca um programa de governo foi tão esquadrinhado, exaurido, na proposta de mais de cem teses oferecidas à opinião pública francesa. Mais ainda, o programa inova em definir exaustivamente o seu custo em prática inédita nas eleições do primeiro mundo. Mas o grito percutente da candidata teve que se voltar aos primórdios da noção de uma esquerda na modernidade. Ségolène sacudiu o eleitorado ao despegue, de princípio, de todo continuísmo de Chirac pelo retorno à inspiração, e aos tambores da Revolução Francesa. Mais que o programa, o que importaria é a identificação da esquerda com o retempero do clamor da sociedade, frente ao aparelho, sua usura e sua manipulação.
A candidatura dos socialistas nasce ao mesmo tempo em que, nos Estados Unidos, o clamor da mudança, acalentado pela primeira esperança na vitória democrática, perde o seu ímpeto, ao evidenciar-se a rendição com a política irreversível do Salão Oval, e do que representa a própria invasão do Oriente Médio como premissa da segurança, e do sucesso do mundo hegemônico e global. A candidatura de Ségolène já ganhou de toda forma o tom do alerta diante da aceleração desses fatos consumados. O clamor pela Marselhesa torna, de qualquer forma, a esquerda guardiã da consciência da alternativa, mesmo que o confronto com a hegemonia passe, agora, ao longo prazo da guerrilha da esperança.
Jornal do Commercio (RJ) 2/3/2007