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Espírito inquieto marca obra

 

No dia seguinte ao 31 de março de 1964, dirigi-me à Prefeitura de Porto Alegre. Como muitos jovens, estava abalado com a notícia do golpe; e, como muitos, pensava em resistir, e achei que o pessoal estaria se reunindo na prefeitura.


Quando lá cheguei, o lugar estava deserto. Só encontrei um velho funcionário na portaria. Perguntei-lhe se sabia de algum movimento contra os golpistas. Olhou-me, suspirou, e disse: "Não, meu filho, não sei de nada. E, se eu fosse tu, iria para casa e ficaria lá bem quieto".


Ir para casa e ficar lá bem quieto: parecia uma coisa pelo menos sensata, e muita gente, na falta de alternativa melhor, fez isso. Outros, não. Outros botaram a boca no mundo. E entre estes outros estava um escritor e jornalista carioca que logo em seguida se tornaria uma figura lendária: Carlos Heitor Cony.


Não se tratava exatamente de um desconhecido. Àquela altura, Cony já tinha publicado romances de grande repercussão, notadamente "O Ventre" e "Informação ao Crucificado". Mas também era conhecido como jornalista e foi nesta condição que se tornou um verdadeiro ídolo para minha geração.


Escrevendo no "Correio da Manhã", Cony corajosamente denunciava as arbitrariedades da ditadura, numa época em que não eram muitos os que podiam ou queriam fazê-lo.


Seu protesto nada tinha de ideológico. Cony não era comunista, não era esquerdista (imaginem se fosse). A sua era só a voz de um homem decente e corajoso indignado contra a situação do Brasil.


Cony pagou um pesado preço por sua independência. Teve de se demitir do "Correio da Manhã", foi preso (seis vezes), afastou-se do Brasil. Mas nunca deixou de escrever, e, sobretudo, nunca abandonou a ficção. O conjunto de sua obra recebeu, em 1996, o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, instituição a qual ele veio a integrar. A ficção de Cony aparentemente pouco a tem a ver com o seu jornalismo, mas só aparentemente. O que temos ali é o mesmo soberbo domínio da palavra, a mesma capacidade de empatia com o leitor. Mas, enquanto o jornalista Cony lida com o presente, o ficcionista Cony volta-se para o passado. Ele se rotula como um memorialista e, de fato, a memória desempenha um importante papel em sua ficção. Neste sentido, é muito significativo o título de um de seus livros, "Quase Memória", onde lemos lembranças da infância, relatos de viagem, personagens de rua em um texto que nos comove pela emoção e pelo lirismo. Ao contrário do que recomendou o velho funcionário da prefeitura de Porto Alegre, Cony nunca ficou quieto em casa, nem em lugar nenhum. Ainda bem. Graças a seu espírito inquieto, graças à sua ousadia e a seu talento, produziu uma obra que marca a literatura brasileira.


Folha de S. Paulo (SP) 25/11/2006

Folha de S. Paulo (SP), 25/11/2006