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Esperança, herança e outras danças

 

Há um sentimento geral de querer ver 2015 pelas costas. Mas isso não significa que se esteja acreditando que 2016 vai ser melhor.

A tristeza que toma conta do país tem algo a ver com o verso de Carlos Drummond de Andrade, lembrança mineira adequada às perdas e dores do rompimento da barragem de Mariana: Perdi o bonde e a esperança. Drummond já tinha sido muito lembrado por ocasião do desastre, por sua visão profética a nos alertar que o rio é Doce; a Vale, amarga.

Esta época do ano tem um cardápio simbólico definido. Natal se associa a harmonia, entendimento e paz. E o Ano Novo é hora de fazer balanços, dar espaço a sonhos e esperanças. Este ano está diferente. Carregado, pesado, tristonho. É verdade que há um sentimento geral de querer ver 2015 pelas costas. Mas isso não significa que se esteja realmente acreditando que 2016 vai ser melhor, que o novo ano venha mesmo como na canção do confiante Chico Buarque, com aquela esperança de tudo se ajeitar. O que nos fica deste ano é a bagagem de uma dolorosa herança, palavra que até pode rimar com esperança mas está longe de indicar alento ou alguma base para a crença de que dias melhores virão.

O mundo assistiu em 2015 à chocante sucessão de guerras e atentados que se somaram à fome, miséria, falta de oportunidades e escorraçaram famílias, levando-as a migrar maciçamente de seus lares no Oriente Médio e na África em busca de uma chance de vida melhor na Europa. Mesmo que para isso tivessem que pagar muito caro e se arriscar a atravessar o Mediterrâneo em botes infláveis e outras embarcações precárias . Como se não bastasse o pesadelo desse êxodo terrível de mais de um milhão de pessoas, a ele ainda veio se somar a intensificação do terrorismo com carnificinas na Síria, no Líbano, na Nigéria e tantos outros lugares, culminando com o massacre de novembro em Paris. Não dá para rimar esperança com matança, por mais que as palavras se ecoem.

Na história bíblica, uma palavra como matança não está longe do presépio, quando vem à lembrança. Surge associada a um exílio: a fuga da Sagrada Família para o Egito, a fim de escapar à violência de um ditador. Como conta o Evangelho, mal Jesus nasceu e já Herodes mandava matar todos os bebês que seus soldados alcançassem, para garantir que nenhum se criaria a ponto de eventualmente ameaçar seu trono. Maneira eficaz de garantir sua manutenção no poder. Nossa Matança dos Inocentes é outra mas igualmente eficiente, distribuída por meio de balas perdidas, ações policiais contra jovens, aliciamento da infância por traficantes, carência de educação. Este ano se aprimorou, atingindo inocentes antes mesmo de nascerem, ainda no ventre materno, por efeitos de vírus, mosquitos, falta de saneamento, descaso com a saúde pública, prioridade para outras gastanças. Depois de amanhã, a 28 de dezembro, o ano litúrgico reza pelos Santos Inocentes. Pode ser hora de fazermos o mesmo.

Também na economia, as coisas não andaram bem este ano aqui pela nossa vizinhança. Um ano sob o signo da perda coletiva de ilusões, da asfixia de antigos sonhos, da crescente desesperança. Não basta constatar com Fernando Pessoa: Onde pus a esperança/ as rosas murcharam logo. Pode valer a pena tentar entender por quê. Talvez venhamos a perceber que pusemos a esperança onde não havia motivos para confiança.

Confiança se apoia em credibilidade. Sem acreditar, fica difícil confiar. Quando se fala em crise de credibilidade nos políticos, acentua-se que é difícil acreditar nessa gente, do presidente da Câmara à presidente da República, passando pelo do Senado e englobando parlamentares em geral, governadores, prefeitos, ministros, vereadores . Mas “essa gente” foi eleita por nós, que o crédito nos seja dado. Representam o eleitorado brasileiro que os elege e reelege, entra ano, sai ano. Votos manipulados por marqueteiros, engambelados por promessas mentirosas, atraídos por pequenos favores imediatos, mal informados por distorções tendenciosas, enganados por não acompanharem o que acontece, mantidos na ignorância, longe da educação, por isso mesmo e para ter esse efeito.

Temos então esta desesperança de agora, fundada na desconfiança. E na insegurança. Fruto de uma herança. De decisões de gastança que pesaram na balança. Culpa da aliança para a governança?

De qualquer modo, foram medidas econômicas tomadas por essa mesma gente que está aí e que se negou a corrigir rumos apesar de todas as advertências e todos os dados que mostravam aquilo que se preferia esconder. Impediram a mudança. Agora prometem mudar sem mudar e corrigir sem corrigir. Quem acredita? Agencias de avaliação de crédito não dão crédito. Ver para crer, dizem analistas. Quem pariu Mateus que o embale, dizem outros.

Continua a contradança. Mas como é a última que morre, enquanto não vier uma bala perdida, sobrevive o sentimento cantado por Paulinho da Viola: É sempre uma nova esperança que a gente alimenta de sobreviver. Que seja. Um bom 2016 para todos. E não apenas para os que creem que quem espera sempre alcança. Esperar sentado, que em pé cansa.

O Globo, 26/12/2015