O Congresso votou lei que estabelece, nas escolas do ensino médio, a obrigatoriedade do ensino de filosofia e sociologia, até agora matérias optativas ou objeto de experiências eventuais, assistemáticas, oscilando entre diferentes tendências e interesses da direção escolar aqui e ali, Brasil adentro. Divulgou a imprensa que algumas autoridades federais do ensino, favoráveis à inclusão da filosofia no currículo de nível médio, não aprovam, contudo, a extensão da medida ao ensino de sociologia . Era de crer que o professor Fernando Henrique Cardoso não vetasse a lei em tramitação. Mas vetou. A Presidência tem suas razões que a sociologia não entende... (que Sua Excelência, "aqui na terra" e o bom Pascal , "no Reino do Céu" me absolvam da paródia).
A proposta, em favor da filosofia, é saudável, se tem por objetivo familiarizar as camadas mais jovens com as fontes superiores do pensamento e das mensagens do humanismo. Mas esse sentido humanístico da formação intelectual não pode vir dissociado da observação e da compreensão das formas de vida ou dos processos por forças dos quais os grupos humanos agem , seja por instinto gregário ou pressão biopsíquica, seja pela busca da acomodação ou pelo recurso ao conflito. O que faz a sociologia é levar o estudante a conferir o pensamento filosófico - ou melhor, as idéias - com a revelação dos fatos e da realidade viva - a variedade das coisas .
Um só exemplo: com a sociologia de Gilberto Freyre, no seu livro-chave, atingirão as moças e os rapazes uma filosofia de viver e conviver, filosofia clara, sem a opressão de um certo dogmatismo e as obscuridades do chamado "pensamento transcendente", que longe de motivarem as classes escolares, não fazem senão aturdi-las, congestioná-las de dúvidas, secar-lhes as fontes do interesse específico e do apetite intelectual para a desejada descoberta das "primeiras causas e dos primeiros princípios" ou, ainda (também na linguagem dos antigos), para o conhecimento da suprema ratio (razão suprema). Assim ainda aparece a filosofia em compêndios "modernos", sem falar daquela definição que lhe deram os clássicos ortodoxos: ipsa ratio gobernatione in Deo ("a mesma razão que Deus governa"); definição que já Sílvio Romero considerava "pretensiosa e artificiosa". E artifício e pretensão não convém transmitir aos jovens, principalmente aos de hoje...
Recordei a filosofia de Gilberto Freyre - filosofia de viver e conviver - e me vem à lembrança Ferdinand Tönnies, um dos mais perfeitos sociólogos alemães, para quem a sua ciência vem a ser, como avaliação do comportamento social, uma longa pesquisa da "convivência humana", a envolver os preceitos da ética, da crença, do trabalho, da fruição da arte, da recreação, do prazer de ser, de fazer, de inventar, de realizar, não num mundo hipotético, traçado pela erudição dos sábios, mas no mundo vivido, deduzido precisamente da convivência e sua constelação de valores humanos.
Eis o que faz a ciência fundada por Augusto Conte: como matéria de ensino, ela completa o de filosofia, clarificando-a; e empresta-lhe uma dinâmica e uma outra sedução que nos jovens acaba por difundir o gosto de pensar , de cotejar idéias e princípios com os seus pressupostos , antes embaciados pela cerração de um filosofismo que não só os confunde em sala de aula, como os faz prisioneiros de si mesmos, acossados por um excesso de luz, a castigar paradoxalmente a visão intelectual.
Devo concluir, lembrando que o velho Conte, superado, de fato em sua doutrinação positivista, afinal nos inspira, neste 2001, a preconizar o ensino obrigatório de sociologia. A dominação que primeiro lhe ocorreu, para o batismo da sua ciência, foi a de física social . Nada mais indicativo do seu realismo na conceituação dos fatos sociais. Nada tão oportuno como meditar na dinâmica do seu pensamento filosófico, a serviço, afinal, da própria sociologia.
Que se mantenha, a bem da convivência pedagógica e cultural, o sistema de vasos comunicantes. Filosofia, sim; sociologia, também. Quanto à filosofia, uma esperança: que venha liberta da pedagogia estorvante e inócua. Ela só faz indispor o aluno com o ensino e talvez com os mestres...
O GLOBO em 16/11/2001