A última reunião ministerial - que trocou a solenidade do Planalto pelo aconchego do Torto - quis trazer ao país o recado das mangas arregaçadas e do todo vapor, assentada a casa e antes da prova dos nove que representam as próximas eleições municipais. O presidente veio à melhor das rotinas, com um barco a velocidade segura, controlando as rotas financeiras, cobrando o desemperro dos gastos, saindo do jejum da transição e a mostrar que o PT não era o governo da forra da utopia e do facilitário social. Os créditos ganhos lá fora e o reconhecimento do presidente como a maior liderança hoje do velho mundo periférico atritam-se agora com o debate salvacionista, ou da tosquia da taxa de juros, desatenta aos impasses da globalização, e do continuarmos ainda um país de conjuntura mais do que de assunção decisiva de um projeto de mudança.
Lula, do mirante do longo prazo para sair do ''mais do mesmo'' do legado de FHC, assenta de vez as contas do governo diferente e do como pretenderá a reeleição. Toda mudança ministerial de fevereiro se aprestou à guinada, no tandem dos ministérios de Patrus e Olívio Dutra. À mesma, afinal, caberá a parte do leão no desincumbir-se do Fome Zero, para além da assistência social, e do desemprego, na usina de braços à obra em que se pode transformar a Pasta das Cidades no país de 78% de população urbana. Toda integração já realizada por Patrus mostra a capitalização do tempo dos ministérios de Graziano e Benedita e da idéia-força da bolsa-família de Cristovam Buarque para os resultados multiplicados nos próximos meses.
Mas estamos no outro pulmão da diferença, o da melhoria do mercado de trabalho e, sobretudo, de como poderá aparecer antes que as eleições municipais ganhem um gume plebiscitário frente ao governo, após a inércia aparente em que foi obrigado a consumir os seus primeiros 500 dias. Não se espere o aumento de emprego pelo agronegócio, já que a competitividade lá fora exige alta capitalização de seus recursos. Nem se confie numa mudança dramática nas relações normais de emprego do setor privado, toda ela orientada para uma outra equação de produtividade. Diga-o a baixíssima resposta que ainda tem o subsídio inédito que o governo ofereceu, de R$1.700,00, para dar a partida a cada primeiro emprego que entrasse na folha de pagamento da empresa brasileira.
É a melhoria urbana que conta como o enorme canteiro de obra para todas as gamas de desemprego, no plano da habitação, do saneamento, da estrada, da visão clássica da obra pública enquanto mola de um mercado vigoroso e continuado de trabalho no país. Se depende das grandes megalópoles o teatro do impacto dessa mudança, aí estão as periferias de São Paulo, do Rio, de Salvador ou do Recife, a gritar por onde vai a urgência política de emprego, encampada agora pelo Planalto.
Não se vê sinal, entretanto, de que uma iniciativa do porte da requerida, com imaginação e nervo político, possa mesmerizar o país a tempo de evitar o plebiscito das municipais. O governo não inverteu o impulso público, pela liderança federal como o fez, criativa e denodadamente, na área da segurança alimentar. Continua quedo em espera, no aguardo do que requeiram de Estados e municípios, no horizonte paroquial condizente com a modéstia pregressa da Pasta. Espera-se, ainda, a articulação da Caixa Econômica e dos programas federais de habitação para que venha à rua o carro-chefe da diferença do governo Lula.
Não há área, inclusive, mais aberta à recuperação da ação econômica do Estado, ínsita à cultura petista e à sua mobilização comunitária. Não se precisa entrar na discussão do modelo do governo Lula para evocar os exemplos históricos, de quando a ação pública sobre o emprego, no New Deal rooseveltiano, derrubou a grande depressão e os impasses do capitalismo financeiro dos 30, de onde emergiu a verdadeira prosperidade americana do último século. O sucesso do governo, como sugere a vara que passa a empunhar o presidente, não se conta pelo menor número de pontos perdidos, mas pela avalanche do novo, despejado diante do país mofino na crença da mudança. Por uma vez, não é este que cerca o Planalto, neste acordar do país do outro lado que entrou com Lula em palácio. O capital único do PT continua o desta reserva surda dos destituídos, que continua a dar-lhe a dimensão de seu sonho, por mais que o atropele a impaciência do Brasil de salão, da orquestração mediática, das polêmicas de Waldomiro ou do New York Times.
O cheque-alimentação e o bolsa-família já saíram da mera amostragem. A farmácia popular acaba de inundar as fotografias em volta do presidente. Que nos dará, em seguida, o Ministério das Cidades? O Brasil de Lula só pede o mínimo do que se espera, para multiplicar-lhe a confiança de retorno. Essa que vai, agora, ao fio do vastíssimo bigode de Olívio Dutra, para renovar a confiança - quer-se a permanência - no governo diferente.
Jornal do Brasil (RJ) 28/6/2004