Há alguns meses, voltou às estantes das livrarias, por uma feliz iniciativa da editora Topbooks e da Academia Brasileira de Letras, um clássico da epistolografia brasileira. Referimo-nos à Correspondência de Machado de Assis e Joaquim Nabuco, que, apresentada e anotada por Graça Aranha, ultrapassa em muito o âmbito de conversa entre amigos e levanta questões importantes acerca do papel do intelectual e do escritor no período compreendido entre o final do Império e os primórdios da República Velha.
Esta terceira edição, enriquecida por excelente estudo introdutório de José Murilo de Carvalho, índice onomástico e caderno de fotos, vem a lume 61 anos após a anterior. A primeira publicação do livro, de 1923, ocorreu graças à generosidade de Monteiro Lobato. O autor de Urupês abriu as portas de sua editora para Graça Aranha, um homem louvado (enquanto tal louvor foi politicamente vantajoso) pelos mesmos modernistas que haviam, anos antes, detratado com virulência Lobato. E no ano seguinte, como se sabe, Graça Aranha acabaria rompendo de modo estrondoso com a Academia Brasileira de Letras, para, pouco depois, ser igualmente abandonado e ironizado pelos ex-aliados modernistas. Com o prestígio abalado tanto entre as hostes da vanguarda quanto entre os companheiros do Petit Trianon, Graça Aranha jamais repetiu o sucesso que obtivera com seu título de estréia: Canaã, de 1902. A demanda, esmaecida com o tempo, por sua produção literária, parecia confiná-lo à condição de autor de um livro só, e, ainda assim, Canaã, hoje, integra o rol de textos mais citados do que propriamente lidos.
Muitos consideram a introdução à correspondência Machado/Nabuco a obra maior de Graça Aranha, e não faltam motivos para isso. Às vezes, sobretudo em decorrência da discreta índole machadiana, as cartas se apresentam como um esboço ou esqueleto a que nosso comentarista acrescenta nervos e consistência, esclarecendo pormenores ocultos na História e desenhando com maestria o perfil psicológico dos dois missivistas a partir de algumas frases certeiramente pinçadas do diálogo epistolar. Num duplo papel - de leitor a posteriori, e de personagem atuante em certos episódios narrados nas cartas - Graça Aranha consegue sair-se com exemplar equilíbrio, seja na justeza das observações, seja no olhar ao mesmo tempo crítico e generoso com que dimensiona a figura particular e pública de ambos os escritores, seja nas articulações que aponta entre a política e a literatura, seja ainda na límpida dicção estilística que imprime a cada página de seu estudo.
Destacando-se entre todos os temas, percebe-se como a consolidação da Academia Brasileira de Letras foi, de fato, uma das maiores motivações da vida de Machado. Ainda aqui, revelam-se os dois temperamentos - fraternos, mas contrastantes: Nabuco na linha de frente, agitador, propondo e hierarquizando candidaturas, comentando-as abertamente, manifestando-se favorável à inclusão de alguns ''notáveis'' para comporem o quadro acadêmico; Machado, sereno observador, evitando opinar sobre nomes, e defendendo, acima de tudo, a necessidade de fortalecer a instituição.
Graça Aranha, em formulação lapidar, o considerou ''o mais livre dos escritores e o mais conservador dos homens''. Pouco propenso a externar suas simpatias políticas, Machado, todavia, jamais se furtou a apoiar a atuação de Nabuco e a consolá-lo nos eventuais reveses da carreira diplomática. Por outro lado, não lhe faltaram a palavra e o amparo do amigo no momento de sua maior crise pessoal: o da morte da esposa Carolina. A velhice e a morte comparecem, ao lado da onipresente Academia, como temas quase obsessivos na parte derradeira da correspondência. A defesa acadêmica se confundia, em Machado, com a afirmação e a dignificação da própria atividade literária, num obstinado esforço de conferir ao ofício de escritor uma ressonância simbólica antes restrita apenas às áreas do poder econômico e político. Certamente foi um grande vitorioso, a ponto de Graça Aranha registrar, a propósito dos funerais do mestre: ''o seu enterro foi uma apoteose. Pela primeira vez um simples homem de letras foi enterrado neste país como um herói''.
Se o homem era ''reservado, tímido, e se por acaso se confessa, é pela metade'', o ensaio de Graça Aranha nos ajuda a compor com mais clareza uma galeria de retratos: não apenas o de Machado, mas o de Nabuco e o seu próprio, na medida em que, no gesto de analisar a ambos, ele mesmo se torna alvo da análise do leitor. Assim, movida por uma ausência (a de Carolina) e por uma presença (a Academia), a conversa de Joaquim Maria e Joaquim Nabuco nos comove até hoje, valorizada pelo notável trabalho interpretativo, de amor e rigor, levado a cabo por Graça Aranha.
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) 30/06/2004