Painel de quase meio século da produção cultural maranhense, em seus diferentes matizes, Sal e Sol, desde logo, se inscreve como obra de referência para a compreensão de um rico universo de valores que viceja para além do pólo formado pelas metrópoles hegemônicas do país.
Neste livro, Arlete Nogueira da Cruz demonstra que a crítica literária, de certo modo, pode representar um exercício oblíquo de autobiografia. Sal e Sol é uma feliz comprovação de tal hipótese.
Seus 56 artigos/depoimentos constituem diferentes facetas de um único e generoso discurso embasado nas afinidades eletivas, que, ao fim e ao cabo, compõem o repertório de produções alheias com as quais Arlete, empaticamente, estabelece um amoroso diálogo. E como é amplo tal leque de sintonias! Poetas, ficcionistas, cineastas, cronistas, dramaturgos, atores, artistas plásticos, músicos, fotógrafos, ensaístas... Praticamente toda a gama de manifestações do espírito criador encontra guarida e fina compreensão na palavra de Arlete – ela, também, autora que não se divide, antes se multiplica, nos vários desdobramentos do verbo, de reconhecida mestria em prosa & verso. Uma trajetória que mescla coerência, talento e ética, e que atinge, em Sal e Sol, o décimo título de uma carreira iniciada há 45 anos com o romance A Parede, prometendo-nos ainda novas etapas, pela tenacidade e constância com que a autora se dedica à literatura: nunca é demais recordar que, para além do que possa haver de pessoal e intransferível na prática das letras, o Maranhão deve à Arlete a criação da Secretaria de Cultura, clara demonstração do seu empenho para a socialização dos bens culturais.
Já tive ocasião de escrever sobre uma coletânea ficcional de Arlete Nogueira da Cruz, os Contos Inocentes, tecida de pequenos e tocantes relatos, alguns deles verdadeiramente extraordinários, pela limpidez de expressão e grande domínio narrativo. Idêntica limpidez emana das páginas deste novo livro, onde a fluência da escrita se alia à agudeza da percepção, daí resultando uma efetiva festa da inteligência, para proveito do leitor. Em momento algum o discurso de Arlete recorre a esotéricas terminologias que distanciem o leitor da leitura; ao contrário, sua quase obsessão é promover, estimular, o acesso ao texto analisado. A erudição da autora se oculta numa leveza que, afinal, nos estimula não apenas a ler Sal e Sol, mas também a buscar o conhecimento direto dos autores e dos artistas cuja produção ela tão bem sintetiza e avalia.
Um rico material iconográfico (várias dezenas de fotos) ilustra o volume, dando conta da amplitude da teia de amizades que Arlete e seu marido, o grande poeta Nauro Machado, construíram ao longo de décadas consagradas ao ofício das Letras, na dupla condição de privilegiados autores e leitores. Numa futura reedição da obra, seria desejável que a iconografia constituísse caderno à parte, em papel couché e com a datação das fotos, informação ausente na maioria das imagens de Sal e Sol.
Por fim, ressaltemos a presença de textos em que Arlete nos fornece um comovido e comovente depoimento de natureza pessoal, a exemplo das páginas consagradas à morte do pai. Nesses retratos de família, a escritora enlaça a escrita à memória, extrapolando o registro meramente crítico para alçar-se à pungente dimensão de uma filha que entoa o cântico póstumo de um amor inextinguível.
O Estado do Maranhão (MA) 12/11/2006