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Érico Veríssimo, o contador de histórias

 

A grande e multifacetada obra de Érico Verissimo (1905-1975) costuma ser dividida em dois grupos. Primeiro, cronologicamente falando, estão os romances da série Clarissa, que, publicado em 1933, inaugurou livros caracterizados sobretudo pela temática urbana ou porto-alegrense.


Nascido em Cruz Alta, Érico foi estudar em Porto Alegre. Retornou à sua cidade natal quando os pais se separaram, em 1922. Teve alguns empregos (num banco, numa farmácia) e em 1930 retornou à capital, disposto a ganhar a vida escrevendo. Trabalhou então na Revista do Globo, publicação que marcou época no Rio Grande do Sul e na qual havia publicado seu primeiro conto, Ladrão de gado (1928).


Àquela altura já estava completamente ambientado em Porto Alegre, que então se transformava em cenário de sua ficção: Música ao longe (1935), Um lugar ao sol (1936), Olhai os lírios do campo (1938), Saga (1940), O resto é silêncio (1942) e Caminhos cruzados, de 1935. Livros escritos nas ''aparas do tempo'', como dizia o próprio Érico, que trabalhava o dia todo na revista e depois na Editora Globo, de amigo José Bertaso. Nesta série costuma ser incluído o curioso Noite, exceção na obra de Érico, um pequeno e enigmático romance com personagens alegóricos e cenário indefinido.


Surge depois a série que os críticos celebram como o ''ciclo épico'' de Érico, iniciado em 1949, e que teve maior expressão na série O tempo e o vento. De fato, trata-se de um gigantesco e definitivo painel da história gaúcha, mais ambicioso que os romances da primeira fase. Mas será um erro rotular este último como literatura menor - um erro para o qual colaborava a modéstia do escritor que se intitulava apenas ''um contador de histórias''.


Contar histórias é algo que Érico de fato sabia fazer, como o sabiam os escritores de sua geração, notadamente Jorge Amado. Também é verdade que era possível falar, nessa fase, de um jovem escritor que arcava, portanto, com o ônus da inexperiência. Nesta fase, porém, Érico já estava experimentando audazmente. Para isso ajudava o seu próprio trabalho. A Editora Globo exerceu papel pioneiro no país, principalmente considerando-se que era uma casa editorial do extremo Sul, distante do Rio, então a capital federal e cultural, e de São Paulo.


Caminhos cruzados é tradicionalmente associado à obra de Aldous Huxley, escritor inglês que à época fazia grande sucesso. Seu livro Contraponto, como indica o próprio título, introduzia uma técnica até certo ponto original: uma série de histórias que, em determinados momentos, se entrecruzavam. Érico, que traduziu o livro, foi inevitavelmente influenciado, mas aí terminam as semelhanças, porque seus personagens são inequivocamente originais e representam uma espécie de microcosmo da sociedade porto-alegrense de então: uma sociedade ainda provinciana, em que a pequena burguesia urbana representa um papel importante, mas na qual as raízes gaúchas estão muito presentes.


Alguém dirá: os personagens de Caminhos cruzados poderiam estar em qualquer novela de TV. Afinal, a novela acabou se transformando numa caixa de ressonância das inquietudes brasileiras. Mas Érico vai mais além. Caminhos cruzados é para ele ''um livro de protesto que marca a inconformidade do romancista diante das desigualdades, injustiças e absurdos da sociedade burguesa''.


Não era, como Jorge Amado, um escritor engajado - que na época significava pertencer ao Partido Comunista e seguir as diretrizes do ''realismo socialista'' -, daqueles que transformavam obras literárias em panfletos de propaganda, como às vezes aconteceu com Jorge. Érico não era um militante. Por causa disso, seu protesto não chegava a ser irado, o que seria incompatível com seu estilo pessoal. Os ricos que retrata não são sanguinários exploradores da classe operária; são, antes de tudo, figuras ridículas, patéticas, mesmo; e os pobres não são heróis proletários, são criaturas sofridas.


Caminhos cruzados é um livro escrito com ''gosto e espontaneidade'', nas palavras do autor. O prazer que Érico teve ao narrar a história é o mesmo prazer que o leitor sente ao lê-las. Raros são os escritores brasileiros - e os escritores em geral - capazes de tamanha empatia.


Érico não hesitava em descrever de forma explícita as cenas de amor e isto, numa cidade conservadora como era Porto Alegre, constituía motivo de escândalo. Em muitos colégios seus livros eram expressamente proibidos, o que os tornava ainda mais atraentes. Mas Caminhos cruzados não era só isso. Era notável literatura, posta ao alcance mesmo de jovens leitores, como era o meu caso. Li e reli a obra várias vezes. E aprendi muito com Érico. Não só eu: uma geração de escritores se iniciou no caminho das letras graças a ele. Inclusive porque se tratava de um homem simples, afetivo, cujas portas estavam sempre abertas.


Quase 70 anos depois de sua publicação, Caminhos cruzados continua a surpreender. E continuo fiel a esta obra encantadora e profundamente humana. Recentemente encontrei na internet um site em que eu aparecia falando sobre ''os cinco livros que haviam marcado a minha vida''. Um deles era, claro, Caminhos cruzados. Eu já não me recordava de ter dado essa entrevista, mas lendo-a tive de admitir que continuava fiel a meu passado de leitor. O que, no caso de uma obra como Caminhos cruzados, é absolutamente compreensível.




Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 30/11/2005

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 30/11/2005