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Érico, ou a arte de contar histórias

 

Érico Veríssimo é, na literatura do Rio Grande do Sul e, em grande medida na literatura brasileira, um verdadeiro divisor de águas. Antes dele, literatura, a grande literatura, era coisa para poucos iniciados. Para boa parte dos brasileiros o livro era um objeto estranho, distante, hermético. Mas Érico produziu uma obra de imenso valor literário que é, também, uma obra extremamente popular. E a pergunta que se impõe é: como o conseguiu?


 


Em primeiro lugar, Érico Veríssimo era um notável narrador. Modestamente intitulava-se um “contador de histórias”, mas a verdade é que toda literatura parte disso, da arte de contar histórias. Ou seja, literatura é arte. Uma arte que Érico dominava de forma soberba. Seu texto, elegante sem ser empolado, flui fácil – mas esta facilidade não nos deve enganar. Estamos diante de uma grande literatura.


 


Uma literatura amável, contudo. Uma literatura que não intimida o leitor (e, muito importante, não o aborrece). Ao contrário, fascina-o. A literatura de Érico (o nome infelizmente não permite um adjetivo tipo “machadiana” ou “drummondiana”: “ericana” soa esquisito, “verissimiana” mais ainda, e neste último caso ainda resultaria em confusão com a obre do Luís Fernando) corresponde ao tipo de pessoa que ele foi: um grande ser humano.


 


Nem sempre grandes escritores são grandes seres humanos, mas quando esta combinação ocorre temos todos os motivos para celebrar. Érico, que teve uma vida difícil e sofrida, desenvolveu uma extraordinária capacidade de empatia para com as pessoas (suspeito que seu trabalho no balcão de uma farmácia em Cruz Alta deva ter colaborado para isso).


 


O certo é que a porta de sua casa estava sempre aberta, inclusive para visitantes de fora da cidade, de fora do estado, de outros países. Disso dão testemunho, entre outras coisas, as obras de notáveis artistas plásticos que enchem as paredes. Entre parênteses, a tradição iniciada por Érico e Mafalda tem continuidade com Luis Fernando e Lúcia. Érico aconselhou e ajudou numerosos escritores, entre os quais o autor dessas linhas.


 


A obra de Érico é ampla e diversificada. Abrange vários gêneros, o conto, o romance, a literatura infanto-juvenil, sem falar na sua produção jornalística (até no rádio atuou), nas traduções e no trabalho editorial.


 


Como tradutor, revelou ao público brasileiro grandes nomes da literatura mundial, lançados pela Editora Globo que, por seu papel pioneiro, deu ao Rio Grande do Sul uma posição de destaque no cenário cultural brasileiro. Ao mesmo tempo, a tradução representou, para o jovem Érico, uma forma de se familiarizar (e de se identificar) com importantes escritores. É visível a influência de Aldous Huxley (de Counterpoint, que Érico traduziu) em Caminhos Cruzados. Suas primeiras obras de ficção tinham como cenário Porto Alegre e personagens de classe média, às voltas com conflitos familiares, de riqueza e de poder.


 


Mas então há uma importante inflexão em sua trajetória. Com a trilogia O tempo e o vento Érico redescobre o Rio Grande do Sul, através de uma visão histórica, épica. Um grandioso empreendimento literário que o empolgou e empolgou os leitores. Inclusive e principalmente porque continuava sendo essencialmente a obra do contador de histórias Érico Veríssimo.


 


A projeção que Érico então adquiriu remete à dimensão intelectual e à repercussão social e política de seu trabalho. Érico foi hostilizado por setores conservadores, que viam sua obra como “imoral”, e também por uma parte da intelectualidade de esquerda: tinha morado nos Estados Unidos, o que o tornava “suspeito”.


 


Abstraindo estas idiossincrasias, porém fica claro que a literatura de Érico, sem ser panfletária, é uma clara manifestação a favos da justiça social, contra a opressão e contra o preconceito. Seu posicionamento pessoal ficou bem evidente depois do golpe de 1964, quando, em pleno período autoritário, assumiu posições corajosas em defesa da democracia e da liberdade de expressão. Mais um testemunho da coerência que, ao lado da qualidade literária e da dimensão humanista, caracterizam sua obra.


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 09/08/2006

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro), 09/08/2006