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Enfim, uma fórmula salvadora

 

HOJE ESTOU disposto a torrar todos vós com algumas considerações sombrias e insossas sobre a nossa estranha realidade social. Tudo começa, obviamente, com a crise do Senado, pasto de cenas que a mídia considera próprias de políticos desalmados, mas, na realidade, pertence à sociedade como um todo, onde se homizia a condição humana.


No meu covil de serpente, apartado de todos, penso cavilosamente sobre o que está acontecendo comigo e com o próximo -e o próximo, aqui, não é o marido daquela mulher que não devemos cobiçar, mas todos aqueles que dividem os pedaços do amargo bolo de nossas desditas públicas e privadas.


Eis que, por acaso, abri alguns livros que iluminassem alguma coisa que me pudesse aliviar a aflição d'alma, que era veraz, embora temporária. Fiquei sabendo então que, no Brasil, a única classe que está sofrendo é a classe média, à qual pertenço involuntariamente e com o pior dos ânimos.


Os pobres, mas pobres mesmo -ensinaram-me o doutos-, pouco sofrem com essas desditas oriundas do preço do petróleo, as oscilações no câmbio, os estouros financeiros, a taxas dos juros que ameaça alguns dígitos -a começar que um pobre dificilmente saberá o que seja um digito, eu próprio tenho vaga noção a respeito.


Por sua vez, os ricos, mas os verdadeiros ricos, pouco sofrem ou nada sofrem com as nossas penúrias e abrolhos. Estão sempre por cima, e o nosso único consolo é que eles jamais passarão pelo fundo de uma agulha (também não conheço nenhum rico que tenha tido a extravagante ambição de passar pelo fundo de uma agulha).


Sendo assim, o abacaxi tem de ser descascado pela classe média, que antigamente não tinha esse nome, mas cujos componentes, forçadamente, eram conhecidos como remediados, ou seja, tomavam muitos remédios para aguentar as pontas e a barra.


Mas a classe média -segundo os mesmos livros- é fauna recente, pois o Brasil só teve uma classe média nos inícios da era republicana. Anteriormente, havia apenas a casa-grande e a senzala, que deram sustentação à esquisita monarquia que tivemos e da qual alguns entendidos estão saudosos.


Dito o que, direi mais. Bolei uma fórmula que poderia resolver nossos problemas fazendo com que a classe média deixasse sumariamente de existir e assim voltássemos todos a ser felizes. Evidente que não proponho um suicídio em massa, muito menos um extermínio também massivo, pois uma hecatombe não resolveria problema algum.


A solução seria voltarmos todos a ser pobres, mas pobres mesmos, sem brigarmos por determinada faixa de areia na praia de Ipanema, apreciando os CDs lançados pelas multinacionais, sejam eles da Ivete Sangalo ou do Michael Jackson.


Deixaríamos esses vis problemas para os muitos ricos que teriam uma distração suplementar e merecida. Acho que ninguém me entendeu, mas não me atirem pedras. Eu próprio não me entendo e me apedrejo por conta própria, antes que os outros o façam. E garanto que as pedradas que me atiro são piores, ferem mais fundo e inapelavelmente.


Afinal, como acabaríamos com a classe média? Se o suicídio em massa não seria aceito de bom grado, o extermínio também em massa custaria caro e seria reprovado pela Declaração dos Direitos Humanos, pela Anistia Internacional e pelo Martinho da Vila -não sei por que coloquei este último na lista, mas tenho a certeza de que ele jamais aprovaria uma hecatombe universal.


A solução mais correta seria a de que todos fôssemos ricos ou todos fôssemos pobres. Um sociólogo diria que deveríamos resolver o problema com o nivelamento por cima, todos seríamos ricos, mas a quem os ricos explorariam? Na alternativa, a pobreza geral e irrestrita seria absurda: a quem pediríamos esmolas e patrocínios para fazer nossos filmes, livros, peças e exposições de arte e cultura?


Como se vê, não é mole o problema que me aflige, o de acabar com a classe média, à qual pertenço pois sou um remediado em progresso, tomando um mundão de remédios para continuar pensando e escrevendo besteiras como essas que aí ficaram. A solução seria repetir Rabelais, já por mim citado outras vezes: "Nada tenho. Devo muito. O resto deixo para os pobres".


Folha de S. Paulo, 14/8/2009